Aquele que vê o mundo de outras perspectivas

  • Cultura
Escritor e poeta betinense fala sobre sua inspiração, tempos apoéticos e sobre o fazer poético

Por Ludmyla Beltrão e Nilton Lopes, alunes de Jornalismo do UniBH

Guto Amaral nasceu em Ouro Preto, Minas Gerais, em maio de 1981, mas há 30 anos reside em Betim, onde amadureceu sua vida literária. Guto é Técnico em Eletrotécnica, graduado em Jornalismo e pós-graduado em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Hoje, é professor de inglês, poeta, contista, organizador de saraus e autor do livro “Tudo de Eu que há em Mim”.

Apaixonado pela educação e pelo fazer poético, Guto Amaral vive a vida com intensidade, e diz enxergar poesia até mesmo nas pequenas coisas, imperceptíveis à olhares indiferentes. Como agitador cultural, em outubro deste ano, comandou a abertura da Festa Literária, realizada pela primeira vez na cidade de Betim, com um sarau de poesias inspirado em Manoel de Barros.

Abrimos, então, a entrevista com um poema de Guto Amaral sobre saraus literários. Ao fim da entrevista, segue um conto escrito pelo autor.

“Sarau para o corpo
Do tolo insistente
Sarau para a alma
Cansada insistente
Sarau para a vida
Ferida insistente
Sarau pra saudade
Verdade insistente
Sarau nesta noite
Afoito insistente
Sarau insistente
insistente, insistente…

Mas tem hora que é foda.”

Quem é Guto Amaral?
Alguém que ama viver, que ama extrair da vida cada gota de prazer e existência. Guto Amaral é alguém que vê poesia no mundo, que trabalha com educação e acredita que o ser humano pode mais, e acredita que pode ajudar o mundo a se tornar um lugar melhor.

Quando você descobriu ter aptidão com as palavras?
Aos sete anos fiz meu primeiro poema, que foi publicado pela escola em um trabalho de fim de ano dos alunos. Eu lembro que fui muito celebrado, fui muito cumprimentado pelos pais dos meus amigos por esse momento, pelo poema que fiz. Ele está no meu livro, se chama “Sorridor”. Ali, eu não sei se eu sabia que tinha aptidão, mas eu gostei de brincar com as palavras e fui crescendo.

O que te levou a escrever poemas?
Eu vejo um mundo poético. Consigo ver no mundo a poesia e eu simplesmente a trago à tona. O fazer poético é natural, ele não foi planejado nem pensado, ele é o resultado natural do meu viver, do meu fazer, do meu jeito de ver o mundo. Eu vejo o mundo assim.

De onde vem a inspiração para a produção dos seus poemas?
Quem quer escrever não pode se dar ao luxo de esperar inspiração. A gente precisa fazer a inspiração acontecer. Em 2014, tive a experiência de me propor a escrever todos os dias, por um ano. Eu não consegui (o ano inteiro), mas escrevi por 210 dias seguidos. E eu vi claramente, nessa época, produzindo 210 contos ao longo de um ano, que a inspiração está em todo lugar. Não é uma questão de buscar inspiração, a poesia é muito mais um momento de pôr para fora aquilo que está explodindo dentro e não de buscar um motivo para escrever. A poesia acontece mais naturalmente do que talvez possa parecer, ela é um momento de precisar se expressar e não um cálculo bem pensado do que fazer.

Qual é a poesia que mais mexe com você? Porquê?
Eu tenho para mim que a poesia segue momentos e a cada momento há um tipo de poética que preciso. A cada instante eu busco um livro de poesia, busco um autor. Há momentos de Manoel de Barros, momentos de Paulo Leminski, Drummond… Cada poesia, cada temática tem seu momento, sua história, mas se eu pudesse escolher uma única poesia seria Tabacaria, de Fernando Pessoa. É uma obra prima porque ela leva a uma reflexão sobre o que nós somos, sobre o que queremos da vida, que é maravilhosa. Mas eu gosto muito do simples, gosto muito de Haikai. O Haikai do Mário Quintana: “todos esses que aí estão, atravancando meu caminho, eles passarão… eu passarinho!” Para mim, ele sintetiza uma genialidade absurda, é um versinho que anda comigo sempre, bem como uma frase do Manoel de Barros que diz que noventa por cento do que ele escreve é invenção, só dez por cento é mentira. Acho que essas são as mais poderosas, o poder de síntese e de construção desse pequeno momento, dizer com poucas palavras é mais complexo que falar muito, do que um longo poema.

Qual seu livro de cabeceira?
Minha cabeceira é uma grande pilha de livros e sempre vai ser. Eu não acredito em uma única verdade, ela muda, assim como meu humor muda diante daquilo que eu leio e vivo. Mas o livro que mais me impactou na vida foi 1984, de George Orwell. Ele consegue ser poético em uma crueldade absurda, ele consegue dizer de uma maneira muito poética o que é a crueldade humana e onde vamos parar se a sociedade continuar vivendo o que vive.
Nas minhas pesquisas, descobri que você também é jornalista. Porque você escolheu fazer Jornalismo?
Eu vivi muito aquilo que me foi oferecido pela vida. Fiz eletrotécnica no ensino médio e descobri que não queria trabalhar com exatas, então me voltei para a área de humanas e sociais e, dentro dessa área, o curso que me pareceu mais excitante foi o de jornalismo, que amei fazer desde o primeiro dia. Me formei na UFMG, puxando minhas matérias para a área de mídias comunitárias, arte… nesse sentido de música, mas quando me formei já trabalhava como professor e a sala de aula me seduziu de uma tal maneira que nunca foi real deixar a sala de aula para ser jornalista. Respeito a profissão e acho que o jeito que dou aula, que trabalho o mundo hoje, é muito jornalístico. Então, eu faço sarau, leio o mundo e tenho uma visão jornalística disso tudo, mas como profissão não me encantou, a sala de aula me roubou e eu fiquei.

Sua visão como jornalista acrescenta nas suas poesias?
A poesia não pode ser estática, ela tem que dizer do mundo, tem que denunciar as injustiças, tem que propor soluções, e isso é jornalismo, né?!

O que um escritor precisa ter para fazer poesia?
Se você precisar pensar no que te leva a fazer poesia, você não vai fazer poesia. A poesia é uma expressão natural do ser humano, é um modo válido de enxergar o mundo. Então, quando abro minha janela e vejo um beija-flor se aproximando do pé de romã, eu posso ver o mundo cru e posso ver o mundo biológico, mas eu posso ver fragilidade beijando beleza, posso ver insensatez, posso ver aquilo que meu momento dita e esse olhar é poético. Eu me lembro do Murilo Gun falando sobre o fazer do comediante, que ele vê aquilo que todo mundo vê e interpreta diferente, o poeta também vê o que todos veem, mas interpreta de uma maneira mais intensa, ele sente mais aquilo que está vendo. Uma vez que você absorve, é preciso pôr para fora ou você explode. Então, o fazer do poeta quase que não é uma opção, ele acaba sendo uma obrigação, uma questão de sanidade, de se manter.

Qual foi sua motivação para escrever seu livro: Tudo de Eu que há em Mim?
Ele fala sobre mim. Quando eu estava na faculdade, por volta do ano 2000, com 20 anos, eu comecei a ler poemas em bares e fazer inserções em shows de músicos para marcar, poder estar junto e tomar uma cerveja… E dentro deste cenário, as pessoas começaram a me cobrar: “poxa, você lê poesias tão lindas e escreve coisas tão bonitas. Cadê o livro?”, e o livro surgiu. Ele surgiu com a brecha de uma lei de incentivo à cultura do município de Betim. Então, a lei me propiciou publicar meu livro, metade dos exemplares foi doada e a outra metade comercializada. A publicação do livro, de alguma forma, chancelou e gerou um rastro mais visível e consolidado do meu fazer poético. São poemas que foram escritos desde meus sete anos até os trinta, juntamente com alguns poemas que foram escritos para a publicação e é a minha história. Realmente para tentar expor tudo de eu que há em mim.

Betim é fruto de inspiração para suas obras?
Tudo é fruto de inspiração e nada é fruto de inspiração. Nada inspira se você não tem o olho de ver e ao mesmo tempo tudo inspira se você se permitir entrar na poesia que está intrínseca em cada coisa. Cada objeto de existência tem uma carga poética, tudo que existe tem poesia. A gente extrai poesia daquilo que nos toca, do que conseguimos perceber. Betim é uma cidade dura, industrial, que não se deixa charmes e que não se embeleza, mas que tem sua poesia, tem seu fazer poético. Betim tem um cenário muito rico para uma periferia de Belo Horizonte por abrigar muitos artistas que não conseguem estar na capital. E sim, eu devo muito do meu crescimento, da minha maturação poética aos amigos que fiz em Betim, aos poetas, aos músicos, à vivência na cidade.

No Sarau Rompedor de Amanhãs, você disse que construiu sua vida literária em Betim. Com base neste longo período residindo na cidade, como você enxerga a cultura literária em Betim? A cidade está passando por tempos apoéticos?
A cultura literária de Betim é a mesma do Brasil inteiro, ela mudou. Eu poderia facilmente dizer que ela é pobre, porque para os padrões culturais anteriores, se voltar em Adorno e Horkheimer, vamos descobrir que ela é a baixa cultura e não a alta. Mas ao mesmo tempo eu reluto um pouco com essa definição porque eu acredito que ela é a cultura que a gente tem e é o que a gente pode, o que a gente dá conta no momento. Há pouco espaço para poesia e para coisas de maiores inspirações? Sim. Há muito espaço para sexualidade e para mensagens de fácil digestão? Sim. Mas isso é o reflexo de quem nós somos, do nosso povo. Acho que cabe cada um puxar pro seu lado. Cabe ao meu lado puxar para uma visão mais poética do mundo, cabe ao racional puxar para uma visão mais racional do mundo, cabe ao sonhador puxar para uma visão sonhadora e cabe ao terreno puxar para uma visão mais terrena. Não tenho rancores com isso, mas também não posso elogiar porque é uma cultura que exclui a poesia de muita coisa, muito pragmática.

Como atrair novos leitores de poesia?
Não acredito em imposição de cultura, nem em naturalização de cultura ou correção de cultura. Cabe a sociedade trabalhar por aquilo que acredita. Que o pessoal do esporte milite pelo esporte, quem é da arte milite pela arte, quem é da saúde milite pela saúde… Nós precisamos de tudo isso. Acho que a forma de atrair novos leitores, literalmente, é dar o espaço dela, é permitir que as pessoas conheçam para que elas possam escolher. Não há escolha se não há conhecimento. O grande caminho é mostrar a poesia – e por isso faço os saraus – para que as pessoas possam escolher e dentro dessa escolha, respeitar. Se sua visão não é poética devemos respeitar isso, não há como impor minha forma de ver o mundo. Mas para alguém me dizer que não gosta de poesia, acho que tem que conhecer primeiro e eu me ponho neste trabalho de auxílio.

Como poeta betinense, quais fatores você acha que são responsáveis pela dificuldade de acesso de grande parte dos jovens betinenses à cultura literária?
Essa é a dificuldade de qualquer outro jovem, primeiro em haver um espaço que aceite essa manifestação, já que a mídia tem uma pauta que é comercial e ela não dá espaço para poesia, por exemplo. Projetos sociais também têm sua pauta, que é mais rápida e frívola, e a poesia também não faz parte dela. Então há de se esperar um edital, um movimento cultural que tenha coragem de propor às pessoas: “eu sei que não é o que vocês gostam, mas se vocês conhecerem, pode ser que passarão a gostar, por isso mostrarei assim mesmo”. As aulas de literatura nos fazem um grande desserviço porque elas massificam um teoria literária ao invés de uma vivência literária e por isso acabam afastando os jovens da literatura. É preciso dar uma chance para que eles se reencontrem, que eles vivam a literatura para escolher se gostam ou não.

Você é um organizador de saraus, qual a importância deles para a sociedade, em especial para as novas gerações?
Eu costumo pôr nas dedicatórias dos meus livros a seguinte frase: “a educação é a grande força de formar um povo, mas só a poesia é capaz de sublimá-lo”. É preciso que a gente apresente às pessoas as opções e dentro delas, respeitar suas opiniões. A função do sarau é promover a experiência para a população de maneira geral e ao mesmo tempo gerar um ambiente para aquelas pessoas que precisam se alimentar um pouco de um mundo poético possam estar juntas celebrando esse momento.

Conto de Guto Amaral – 22/10/2014
Emaús
TDAH

Um dos ritos de passagem mais importantes para as crianças Emaús é a primeira consulta médica após o início escolar, quando os pequenos recebem seu laudo de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade ou TDAH. Praticamente todos os Emaús possuem tal transtorno sendo este uma das mais importantes características da população em geral. Os pobres infelizes que nascem sem o transtorno estão destinados a uma vida de sofrimento ou à loucura. Existe um mercado negro de drogas que simulam ou alegam causar o TDAH, mas sem qualquer comprovação científica. Isso não impede que vários pais recorram a estes meios escusos tentando evitar que seus pequenos sofram.

Uma das mais cruéis punições previstas no código criminal Emaú para jovens infratores é a condenação ao uso de Ritalina. Reservado apenas aos piores casos, apenas aos jovens flagrados fazendo campanha política, lendo Dostoiévski ou trocando o conteúdo das garrafas de cajibrina por óleo de fígado de bacalhau nas adegas públicas. O jovem deixa então seu mundo aéreo e é condenado a uma existência miserável no mundo real. Sob o efeito da Ritalina ele fica obrigado a prestar atenção a cada detalhe da vida. Compreende como a música tocada nas rádios é horrível, como os filmes Emaús são confusos, e como tudo aquilo que é ensinado nas escolas não faz o menor sentido. Ele percebe que as conversas que temos hoje em dia não levam a lugar nenhum, que grande parte das profissões existentes são pura perda de tempo e que ninguém no mundo, exceto ele, consegue perceber o ridículo em que vivemos. Isso transforma o mundo e causa traumas profundos na singela alma da ave.

Neste momento os defensores dos direitos Emaús fazem protestos em frente ao palácio do governo e exigem que os maus tratos sejam interrompidos. Eles ameaçam desamarrar os cadarços de todos os cidadãos e cobrir as placas de transito com faixas coloridas. O governador pode imaginar a população no dia seguinte, confusa sem conseguir chegar ao trabalho ou voltar pra casa, lotando os hospitais machucados pelos tombos que levaram devido aos cadarços desamarrados. Ele faz uma ligação e cancela a pena oferecendo o perdão oficial aos jovens infratores.

Mas o jovem Emaú já sofreu o castigo. Sua alma já foi marcada pela presença fria da realidade. Nenhum Emaú jamais voltou a cometer um crime após o tratamento.



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