“A Febre” é obra que reflete sobre a condição indígena num país capturado pelo metabolismo capitalista.
Por Hiago Soares, aluno do 8° período de Jornalismo do UniBH
Justino (representado pelo excelente Regis Myrupu) é um indígena Desana que saiu de sua aldeia para viver na periferia de Manaus. Na cidade, passou a trabalhar como vigia num porto de cargas, de onde observava silenciosamente aquele organismo maquinário de aço e metal erguer uma floresta de contêineres vindos do outro lado do oceano. Vestido com um uniforme de segurança, um capacete de proteção na cabeça e uma arma carregada na cintura, transformara-se, nas palavras do próprio protagonista, num caçador sem caça, afinal.
Em A Febre, a diretora Maya Da-Rin oferece ao público uma trama cuidadosa e paciente que, na companhia de seus personagens, reflete sobre a condição indígena num país capturado pelo metabolismo capitalista, arrasado pelas promessas da ordem e do progresso como força civilizatória que, como se sabe, fez dessa terra cemitério a céu aberto dos povos originários e, por consequência, empurrou para as bordas das cidades as populações mais vulneráveis, obrigando-os ao regime da desigualdade e da precarização.
Nesse cenário, cercado pela vastidão amazônica, Justino tem como única companhia sua filha Vanessa (Rosa Peixoto), enfermeira num posto de saúde local que havia conseguido se classificar para o curso de Medicina na Universidade de Brasília. Ao anunciar sua mudança para a capital do país, Justino desenvolve uma febre constante, teimosa, que nem mesmo os médicos conseguem compreender e tratar.
O sofrimento do pai pela ausência iminente da filha se mistura a outros conflitos que são reveladores de processos culturais que o filme busca representar e que podem estar por trás daquela condição febril inexplicável. Vemos em cena um homem que passou a repetir, cotidianamente, os mesmos gestos e horários no trabalho, assim como o trajeto para o caminho de casa, além de consumir, como ele mesmo diz, “comida comprada no supermercado”. Por outro lado, ainda preserva outros costumes tradicionais, como dormir na rede e contar histórias de seus ancestrais.
É esse contexto de estranheza e aculturação que está colocado na tela. De um indígena, portanto, com os pés fincados no cimento, a cabeça às voltas com a lembrança da aldeia, que fala português no serviço, mas se expressa no idioma tucano quando está reunido com a família. Um homem cujos traços do rosto não escondem sua origem, mas que, apesar disso, é lido como “índio amansado”, porque não traz nas suas mãos um arco e uma flecha. Alguém que, sob o regime domesticado do trabalho na cidade, compreendeu como se opera a diferença entre a caça na mata e caçada na capital: aqui, “quem não tem dinheiro não come”.
Premiado em diversos festivais (e com razão), A Febre é um trabalho excepcional que temos a sorte de poder apreciar. Nenhum plano é filmado de maneira gratuita. Os cortes e a edição, por exemplo, dão o ritmo necessário para cada ambiente, de modo a extrair dali os significados necessários para compor a obra. A diretora escala um elenco afinado e competente, que nos conta uma história capaz de acender as reflexões mais oportunas. Afinal, o Brasil doente e violento de hoje não é só aquele que “passa a boiada”, engolindo o campo para plantar a riqueza dos gananciosos, mas o que desde tempos tão distantes, como diria Justino, “tem os olhos grandes, mas só vê o que está na sua frente”.