Adoção não é caridade: as múltiplas visões sobre o processo no Brasil

Entenda toda vivência e aspectos emocionais que envolvem adotar e ser adotado no país

Por Íris Aguiar, aluna do 1º período de Jornalismo, e Mylene Alves, aluna do 5º período de Jornalismo.

O Brasil, no mês de maio, comemora o Dia Nacional da Adoção. Por mais que seja um assunto conhecido, existem muitas dúvidas e problemáticas pendentes sobre o assunto.

A adoção é o processo onde se cria um vínculo parental que até então não existia, onde -normalmente- não se tem ligação biológica. As crianças que esperam por um novo lar são as que vivem casos de destituição familiar, quando a família, por diversos motivos, perde o poder familiar sobre elas. Esses casos podem ser decorrentes de várias ações inadequadas, como descumprimento de responsabilidades que infringem o direito das crianças e dos adolescentes, abuso extremo de autoridade, abandono, dentre outros.

Mas, com tudo isso, é importante lembrar que adotar não é um ato de caridade e, atualmente, o interesse das crianças e adolescentes em serem adotados é muito valorizado. Sendo um processo muito delicado e de muito envolvimento emocional, é necessário pensar no afeto e no desejo que ambos os lados têm de formar essa família, não somente na ideia  de realizar seus sonhos unilaterais. Assim são evitadas algumas frustrações e egoísmos.

CENÁRIO DA ADOÇÃO NO BRASIL

O cenário da adoção no Brasil é complexo. O número de crianças acolhidas em abrigos é bem alto, mas o número de crianças disponíveis para adoção é surpreendentemente menor. Isso se dá, muitas vezes, por sua destituição familiar ainda estar pendente na justiça.

O Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) é responsável pelo cadastro das crianças que estão aptas à adoção e que estão sendo acolhidas em território nacional. Em pesquisa realizada de 2015 a maio de 2020, juntamente com o Cadastro Nacional de Justiça (CNJ), o SNA disponibilizou relatório com os números atuais de crianças acolhidas, aptas à adoção,  número de pretendentes, dentre outros.

De acordo com os dados dessa pesquisa, 10.120 crianças foram adotadas nos últimos 5 anos. Ainda existem 2.543 crianças em processo de adoção, 32.791 em acolhimento institucional, 1.336 em acolhimento familiar e 5.026 disponíveis para adoção.

No país, as regiões que mais acolhem e adotam crianças são as regiões sul e sudeste.

A apuração expressa um número de 34.443 adotantes, 2.008 em processo de adoção e 9.887 já adotaram.

Desde a divulgação do relatório, os dados sobre adoção, no Brasil, sofreram alteração. Segundo informações divulgadas em março deste ano pelo SNA, o número de pretendentes caiu em 10%, atingindo o número de 33.931 adotantes. O total de crianças acolhidas passou para 31.003, este valor, entretanto, não corresponde ao total de crianças e adolescentes aptos à adoção, número este que  cresceu em 82%, chegando a 9.169 crianças disponíveis.

Em Belo Horizonte, dados da Vara Cível da Infância e da Juventude da comarca de Belo Horizonte revelam que, na capital mineira, nos últimos anos, 4.449 foram registradas no sistema de acolhimento. Destas, 48 foram adotadas, 107 reintegradas aos genitores, 68 estão em processo de adoção e 58 estão sob guarda.

O PERFIL DESEJADO X DISPONÍVEL. QUEM SÃO OS PRETENDENTES À ADOÇÃO?

No Brasil, a adoção ocorre em processos lentos, que em sua maioria levam cerca de 4 anos. Essa demora, entretanto, além de ser reflexo de uma burocracia, é consequência também das preferências dos adotantes.

O país acolhe, aproximadamente, 34.000 crianças, dessas, 77% são adolescentes e apenas 0,3% dos pretendentes desejam adotar crianças nessa faixa etária. Das adoções realizadas, 51% foram de crianças com até 3 anos completos, 27% foram crianças de 4 a 7 anos completos, 15% de crianças com até 11 anos completos e apenas 6% foram de adolescentes, que possuem mais de 12 anos completos.

 

Outro fator que deve ser levado em consideração são os números de pretendentes em relação à preferência por etnia e quais são os perfis disponíveis. A maioria das regiões não possui essa preferência, com exceção da região sul, em que os adotantes têm preferência por crianças ou adolescentes brancos.

 

Na capital mineira, dados disponibilizados pela Vara Cível da Infância e da Juventude da comarca de Bela Horizonte mostram quem são os pretendentes e quais suas preferências.

  • Estado Civil
    • Solteiro(a)- 47 registros
    • Divorciado(a)- 16 registros
    • União Estável- 35 registros
    • Casado(a)-346 registros
    • Viúvo(a)- 1 registro
  • Etnia aceita
    • Branca- 215 registros
    • Parda- 224 registros
    • Preta- 0 registros
    • Amarela- 31 registros
    • Indígena- 28 registros
    • Qualquer- 187 registros
  • Idade aceita
    • Até 2 anos- 158 registros
    • Até 4 anos- 181 registros
    • Até 6 anos- 80 registros
    • Até 8 anos- 22 registros
    • Até 10 anos- 9 registros
    • Até 12 anos- 4 registros
    • Até 14 anos- 2 registros
    • Até 16 anos- 0 registros
    • Até 18 anos- 0 registros
  • Quantidade aceita
    • Uma Criança- 315 registros
    • Duas Crianças- 140 registros
    • Três crianças- 0 registros
    • Quatro ou mais crianças- 1 registro

Conversamos com Rodrigo Calil, empresário e ator, pai por adoção, que nos contou sobre sua experiência ao preencher os perfis de filhos que poderia adotar. “É esquisito. Eu tinha muito claro pra mim que eu estava sendo pai, não fazendo caridade, então o que eu não der conta eu não vou colocar. Fui seguindo meu coração mas, quando você é pai de uma gestação biológica, você reza pra que venha com saúde, e é isso que importa. No final das contas foi isso”, ressalta.

Adotar, segundo Rodrigo, não é fazer caridade. “Essa lista é triste, mas colocar coisas que você acha bonito fazer e não dá conta, é pior. Imagina o trauma de ser devolvido”, disse Rodrigo. “Muitas pessoas enquanto eu estava na fila vinham falar ‘que lindo seu gesto’, peraí cara, eu tô sendo pai, não estou fazendo caridade”.

COMO ADOTAR

O processo de adoção, segundo o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, é gratuito, acontece na Vara da Infância e da Juventude, e envolve 9 passos. Sendo eles a apresentação de documentos, a análise desses documentos, a avaliação da família pela equipe multidisciplinar do poder judiciário, participação em um curso preparatório, a habilitação para adoção, e então a família entra para o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento.

Depois disso, começa o processo de procurar uma família para as crianças e adolescentes que, quando encaminhado, há a possibilidade de visitas periódicas. Com a aproximação bem avaliada partimos para o estágio de convivência, quando a criança começa a morar com a família. Depois, havendo a proposta de adoção, o juiz fará uma avaliação e consolidará, ou não, a adoção.

O TEMPO DE PROCESSO

O tempo médio de espera do país, entre a data do pedido de habilitação e a data das sentenças de adoção dos pretendentes, é de 4 anos e 3 meses. Já para os que aguardam adoção, desde a data do pedido da habilitação até os dias atuais, estima-se o tempo médio de 3 anos e 7 meses.

 

Neste tempo de espera, os adotantes enfrentam alguns aspectos importantes, principalmente em termos psicológicos, e a atenção deve ser redobrada. “A espera faz parte do processo mesmo, a gente até faz comparação com a gravidez biológica, e é o que a gente chama de gestação da adoção. Nós entendemos que existe ansiedade e angústia da parte dos pais no tempo de espera, e é aí que entra a equipe da vara e outros mecanismos não jurídicos, como os grupos de apoio e a psicoterapia para aqueles que têm possibilidade de acessar esse serviço”, comentou a psicóloga jurídica, mestranda em Psicologia Social pela UFMG, Camile Veiga.

ADOÇÕES NECESSÁRIAS

As adoções necessárias são consideradas o grupo de crianças que têm mais dificuldade em encontrar famílias adotivas. Esses perfis envolvem as crianças que têm problemas de saúde, alguma deficiência, estão em grupos de irmãos, ou até mesmo as consideradas “adoções tardias”, que são adolescentes e crianças maiores de 4 anos.

Camile Veiga estuda a temática das adoções necessárias em seu mestrado, com previsão de defesa para julho deste ano, e explica que o processo dessas adoções pode até ser mais rápido, principalmente para as famílias que podem receber crianças e adolescentes com deficiências. Essas são consideradas adoções prioritárias, tendo em vista que as instituições de acolhimento muitas vezes não tem toda a estrutura para cuidar dessas crianças como precisam e merecem, e é muito melhor que estejam em um lar com uma família que possa as proporcionar isso.

Mas, é importante reforçar que em todo momento a família deve pensar no que realmente está apta para lidar, já que a adoção precisa ser confortável para todos os lados. Pensar em acelerar o processo e não levar em conta suas limitações pode resultar em uma futura quebra de expectativas, e até na volta dessa criança para o abrigo.

Quanto às  crianças, aspectos emocionais também são importantes e devem ser considerados no que se refere à adoção. “Nas crianças, principalmente as mais velhas, existe muito medo de não ser adotada, de não ser inserida numa família substituta, mas também uma ansiedade muito grande de estar sendo inserida, uma disposição muito grande”, pondera  a psicóloga.

Para Camile, é importante lembrar que as crianças também podem estar vivendo um processo de desligamento da família de origem, ainda lidando com suas memórias afetivas, seus motivos para estarem ali, mas que isso não obrigatoriamente as torna resistentes a sua nova família, pelo contrário, normalmente elas têm expectativas positivas, de receber amor e um novo lar.

Algumas delas também lidam com o medo de um novo abandono mas, segundo Camile, as famílias são preparadas para isso em um curso, no processo de habilitação, em que são informadas sobre as problemáticas que podem surgir. Já que, diferente do imaginário popular, essas crianças nem sempre são órfãs. Os adotantes precisam entender que vão lidar com histórias que muitas vezes envolvem medidas protetivas do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

O QUE ACONTECE COM OS NÃO ADOTADOS?

Apesar de haver incentivo para que essas crianças e adolescentes sejam adotados, algumas vezes isso não acontece. Nesses casos, elas podem permanecer nos lares de acolhimento até os 18 anos, tendo que se cuidar fora dali a partir dos 19. Mas esse processo pode ser repentino demais e, visto que, em nossa sociedade, poucas pessoas estão prontas para tal responsabilidade nessa idade, será que esses jovens são preparados?

“Nos acolhimentos institucionais temos o que chamamos de preparação para o desligamento. Cada adolescente tem um plano individual de acolhimento e, dentro desse plano, conforme vão ficando mais velhos, vai sendo planejado o desligamento. A prioridade é que eles sejam inseridos em programas de profissionalização, que concluam o ensino médio, e assim se preparem para ingressar na vida adulta”, conta a psicóloga jurídica Camile.

Esses jovens, assim que saem dos abrigos, precisam se bancar e ter onde morar, o que pode ser um grande desafio. Pensando nisso, existem as repúblicas, uma iniciativa pública não tão conhecida e nem tão ampla, mas que oferece acolhimento temporário a eles. Em Belo Horizonte, temos o “Avante Social” que, em parceria com a prefeitura, conta com duas unidades, sendo uma masculina e uma feminina, com 6 vagas cada.

ADOÇÕES POR CASAIS LGBTQI+

O Estatuto da Criança e do Adolescente não coloca a orientação sexual dos pais como um fator a ser avaliado no processo de adoção. Desde que a família corresponda aos requisitos psicológicos e psicossociais considerados, poderá se qualificar para receber uma criança.

Rodrigo Calil é também autor e ator do monólogo “Adotivo”, desenvolvido com base em cartas escritas durante sua espera na fila de adoção, e que hoje são interpretadas por ele. Sua adoção é homoparental e nos disse que, quanto a serem dois pais, nunca houve diferença de tratamento, por nenhuma das partes, mas conta que o processo não foi fácil, nem rápido.

“Foi muito desgastante o processo burocrático em si, e é uma coisa que eu costumo falar: uma  gestação biológica, quando se dá os nove meses, a criança nasce. Na gestação adotiva existem um milhão de entraves que vão atrasar a chegada dessa criança, como a burocracia legal, a morosidade da justiça, os trâmites internos”, afirma Calil.

Rodrigo conta que, em sua experiência com a adoção, mesmo sendo filho biológico, identificou figuras em sua vida que colaboraram para que essa paternidade fosse um desejo desde muito novo. “Eu acho que adoção é muito mais que um processo burocrático e legal, é um desejo mesmo que a gente sente no coração. Foi muito fácil pra mim, depois de adulto, escolher a adoção pra me tornar pai, e não um processo biológico em si. Esses personagens da minha vida me mostraram que adoção não é só processo, é o dia a dia, é o amor, é o desejo em si. Nada mais é do que o meio que a pessoa se torna pai ou mãe, as questões mesmo do dia a dia, depois que a gente está com nossos filhos, são normais, assim como uma criança biológica”, realça.

A filha de Rodrigo chegou à sua família depois de longos 3 anos de espera, em 2016, quando tinha seis meses de vida, no mesmo dia em que receberam a ligação da Vara da Infância e da Juventude. Ele destaca a importância da rede de apoio familiar nesse momento. “Chegar com minha filha e ter que, do nada, me adequar para cuidar dela, eu não tinha fralda, não tinha nada, mas amor tinha de sobra. E eu falo que foi um momento mágico, começaram a chegar coisas de gente que nem conhecíamos. Ligavam falando ‘tal pessoa mandou isso, pois soube que vocês receberam uma bebê”, narra.

COMO AJUDAR MESMO NÃO ADOTANDO

O apadrinhamento afetivo é uma forma de entregar amor mesmo quando não se consegue fazer uma adoção. É conhecido como um programa que tem por objetivo  desenvolver vínculos afetivos e duradouros entre as crianças, adolescentes e as pessoas que se dispõem a ser padrinhos e madrinhas. Isso dá aos abrigados uma base em que podem se apoiar e confiar, é uma referência além das pessoas que convivem com eles nos lares de acolhimento.

Costumeiramente é mais frequente com crianças maiores de 10 anos, que têm chances remotas de adoção. É uma responsabilidade, mas não envolve guarda legal. Existe um processo de preparação e, após concluído, os padrinhos podem participar de momentos na vida de seus afilhados, como levar ao médico, ir a reuniões de escola e proporcionar lazer.

Outra maneira de ajudar é procurando os lares de acolhimento e questionando sobre suas necessidades, por meio  de doações e prestações de serviços.

 



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