Casa-grande e senzala

Por Matheus Rocha – 7º período de Publicidade e Propaganda UniBH 

Contarei estórias de negação. Pois, os fantasmas do passado ainda caminham entre nós e nada desaparece por completo da memória. Em um país negro e pobre, como o nosso, é dessa maneira que o racismo se mantém na estrutura da nossa sociedade. A história do Brasil foi marcada por quase quatro séculos de escravidão da população africana e afro-brasileira, e apesar da abolição da escravatura, não houve uma ruptura entre a casa-grande e a senzala.

Angela Davis (2019), filósofa e ativista afro-americana, nos diz: “Nós proclamamos a abolição da escravidão pensando que os impactos econômicos, culturais e sociais da escravidão fossem desaparecer automaticamente”. Claro, há diferenças gigantescas entre o sistema escravocrata brasileiro de 300 anos atrás e o sistema em que nos encontramos hoje, mas ainda existem comportamentos que nos lembram e retomam esses tempos anteriores.

A crise que vivemos hoje tem cor, e é a partir dela que nossa sociedade elege quem morre e quem vive. Podemos medir isso pelo quão descartáveis e substituíveis são os corpos negros. Ao lançarmos mão de uma visão crítica dessa realidade que afeta todos nós, percebemos que a maioria da população negra é excluída da possibilidade de tentar sobreviver quando se vêem obrigadas a trabalhar e frequentar os “casarões dos senhores”, ainda que eles estivessem contaminados pelo coronavírus.

O que trago aqui, vai ao coração da estrutura racista em que vivemos: muitos moradores das comunidades brasileiras mantêm a força de trabalho, compõem uma parcela social mais vulnerável, estão destituídos de uma rede eficaz de tratamento de saúde e proteção à vida e dependem de transporte público massificado. Eles são a prova de que resquícios da escravidão, como opressão e territorialismo, ainda são obstáculos que dificultam qualquer reparação.

Como esquecer de Dona Cleonice? Primeira vítima da pandemia no RJ, que nem após a sua morte escapou da invisibilidade quando lhe tiraram até o nome, sendo retratada pela mídia apenas como “A empregada doméstica que morreu de coronavírus” por contrair a doença de sua empregadora, que nem se deu ao trabalho de avisar que estava doente. São vidas de homens e mulheres que precisam provar que não são menos, e que as mesmas adversidades dos seus “senhores” não lhes são diferentes, quando são reduzidos a uma forma contemporânea de subjugação da vida ao poder da morte.

Se pensarmos um pouco mais fundo nessa estrutura, chegamos ao modelo de encarceramento brasileiro, com a terceira maior população carcerária do mundo, pouco mais de 800 mil presos, sendo que, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DNP), 65% da população presa é predominantemente composta por pretos ou pardos. O sistema penal funciona quase como uma limpeza colonialista maliciosa, de valores eugenistas e que mantém uma lógica ainda opressora e estrutural de captura e extermínio da população negra.

Ilustração: Matheus Rocha – 7º período de Publicidade e Propaganda UniBH

Parafraseando Conceição Evaristo, em seu livro Olhos D’Água (2018), “Deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida menos cruel”. A gente vive uma vida inteira de negação de dignidade e de direitos, e custa muito pouco para os capitães-do-mato e seus senhores continuarem a explorar, segregar e pedir um sacrifício da população negra e pobre, porque para tais já estamos e somos destituídos de humanidade. Xeque-mate para a casa-grande e toda essa estrutura. Eles banalizam nossos corpos e colocam em tabelas e números quantos dos nossos devem morrer.

O racismo, assim como o coronavírus, não conhece fronteiras étnicas ou de gênero. Da senzala de séculos atrás restaram apenas assombrações, uma imagem diluída no tempo. No entanto, quanto mais a casa-grande habitar em nós e oferecer morada aos desejos e ilusões senhoriais, mais reais e violentos serão os retornos de imagens adormecidas dos sofrimentos que fomos coniventes em soterrar.

Será que não superaremos as explorações humanas? Será que reencarnaremos em corpos vivos a imagem morta do colonialismo? Não aprenderemos que toda vida importa? Até quando haverá uma senzala querendo nos aprisionar e uma casa-grande nos afastando a possibilidade de existência?

Para refletir mais, ouça os podcasts “Casa-grande e senzala”.

EP 01 – com Padre Mauro

EP 02 – parte 01 – com Daniely Reis

EP 02 – parte 02 – com Daniely Reis

EP 03 – com Mauro Bracho



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