Como o entretenimento, o uso de dados e a inteligência artificial se transformam em estratégias publicitárias para impulsionar o consumo.
Por Davi Bicalho e Hiago Soares
“Vou te falar um negócio, vou citar um livro de um cara que eu gosto muito”. Eram quatro horas da tarde de um dia abafado e seco de setembro quando Vince Vader abriu o exemplar de capa cinza e letras garrafais na cor azul de Bom Entretenimento, escrito por Byung-Chul Han – filósofo sul-coreano que se debruça a pesquisar a sociedade contemporânea capitaneada pelo delírio consumista e neoliberal. “Vou ler para você um trechinho que eu acho muito interessante”. E reproduziu, então, com seu sotaque paulista característico, as palavras do pensador:
“As fronteiras entre ‘realidade real’ e ‘realidade ficcional’, que marcam o entretenimento, tornam-se cada vez mais fluidas. O entretenimento se eleva a um novo paradigma, a uma nova fórmula de mundo e de ser. Para ser, para pertencer ao mundo, é preciso ser algo que entretém. Apenas aquilo que entretém é real ou efetivo”.
Vicente Martin Mastrocola, mais conhecido por Vince Vader – nome que faz referência a um dos personagens centrais da franquia Star Wars – é professor da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) de São Paulo, onde leciona disciplinas como Análise de Jogos e Game Design para turmas de Sistemas de Informação e Publicidade e Propaganda, além de executar projetos e pesquisas em torno da gamificação. Vader tem 41 anos, o cabelo curto repleto de fios grisalhos, a barba cheia que marca o rosto com pelos também brancos e, naquele dia ensolarado em que leu para mim um trecho da obra do intelectual asiático Byung-Chul Han, explicou como o conceito de jogo (game) se relaciona com o seu trabalho de criar para empresas e grandes marcas o entretenimento necessário para o aprimoramento de uma equipe de funcionários ou para a captação de novos clientes, alavancando os lucros, otimizado pela diversão.
“Gamificação é o uso de jogos em situações que não são jogos. É a aplicação de elementos presentes no game que designem atividades que não são games”, explica o professor. Segundo ele, gamificar algo significa empregar técnicas motivacionais que os produtores de jogos (como os devideogame e tabuleiros) usam para motivar constantemente seus jogadores, aplicando essas técnicas em contextos que vão desde o programa de milhagens de uma companhia aérea a aplicativos de entrega de comida, transporte particular, ou quando você coleciona carimbos do supermercado para ganhar um brinde ao final de uma promoção. “Os próprios aplicativos como o iFood, o Uber – funcionam assim- , quanto mais você usa mais vai ganhando benefícios”, complementa.
Para garantir sempre boas avaliações, além de elogios e comentários que o ajudem a ganhar a confiança dos clientes, Ivan Soares, 45, que trabalha há um ano e meio como motorista de aplicativo desde que foi demitido de sua última ocupação numa fábrica de tecidos, garante que mantém o carro limpo e tenta chegar o mais rápido possível até o passageiro que solicitou a sua corrida. “Sempre dou bom dia ou boa tarde, e se tiver com sacola pergunto se quer ajuda”, afirma.
Outro exemplo que Vader destaca é a recente campanha publicitária para o novo sabor Wasabe dos salgadinhos Doritos, que trabalha com linguagem de filmes japonês, bem ao estilo Jaspion, famosa série de super-heróis que fez muito sucesso na década de 80. Cada embalagem do produto contém um Tazo (pequenos discos colecionáveis) com um código no verso que dá acesso a um jogo de Pac-Man no site da marca.
Procedimentos como estes buscam engajar usuários numa competição, encorajando-os a cumprir determinados objetivos como forma de subir de nível na plataforma, além de outras possibilidades, como o incentivo à colaboração em equipe, caracterização de status por ranking, estímulo de acúmulo de pontos, premiação, dentre outros. “O principal benefício nas estratégias de consumo de marcas, produtos e empresas a partir da gamificação é o fato de poder engajar a pessoa por meio do entretenimento na experiência de consumo”, finaliza Vader. Mas esse não é o único método usado por corporações e redes varejistas quando o plano é aumentar suas receitas e cooptar a atenção da clientela.
ENTRE HUMANOS, BISCOITOS E ROBÔS
O celular estava na mesa. Enquanto isso, a jornalista Fernanda Pontes, 28, que havia descoberto há pouco tempo sua gravidez, conversava com o namorado na sala de casa sobre a gestação. Foi questão de dias até que anúncios de produtos para bebês e gestantes começassem a circular nos sites e redes sociais que a futura mãe visitava. Mesmo bloqueado, o celular havia captado as conversas que rondavam suas expectativas sobre a maternidade e, nas semanas seguintes, transformado um diálogo de pais de primeira viagem em dados que foram usados para, no momento oportuno, direcionar a publicidade adequada àquela situação.
“Os anúncios começaram a aparecer logo que comecei a trocar mensagens com meu namorado e minha irmã sobre a gravidez, principalmente no Instagram, onde recebo ofertas de roupas para bebês”, conta. Pontes relata que tem consciência de estar sendo observada pelas redes sociais, mas que, ainda assim, se sentiu invadida, tamanha a precisão dos algoritmos em reconhecê-la como consumidora em potencial. “Apesar disso, um anúncio que chegou e que me influenciou positivamente foi o de um sling, que facilita carregar o bebê recém-nascido e dá autonomia para a mãe realizar outras tarefas”, relata.
Embora importunada com tanta propaganda, Pontes acredita que as redes sociais e seus anúncios frequentes acabaram lhe ajudando a identificar itens de compra essenciais para o cuidado com a criança, sem deixar de notar a quantidade de produtos supérfluos que são expostos nessa vitrine virtual com a etiqueta da necessidade. “É muito importante informação para irmos além da lógica do consumismo e não sermos enganados e engolidos por essa bolha do capitalismo”, conclui.
De acordo com Luciana Bicalho, 36, doutora em comunicação social pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e professora de Narrativas Transmídia e Tendências do Jornalismo Contemporâneo no Centro Universitário UNA, em Belo Horizonte, esses dados são capturados por códigos que entram e saem da rede, seja a partir de um celular ou mesmo uma TV Smart conectada à internet, e têm como objetivo reconhecer padrões nas atividades dos usuários em ambientes e plataformas digitais. São os chamados algoritmos, e eles estão por toda a parte: dos resultados de uma pesquisa realizada no Google às possibilidades de interação e interface numa determinada rede social, máquina ou aplicativo.
Quando você acessa um site, por exemplo, é comum receber uma notificação na tela avisando que aquela página usa cookies para facilitar sua navegação e recomendar conteúdo e publicidade pelos quais você possa se interessar. Isso só é possível porque os cookies (na tradução literal: biscoitos) são pequenos arquivos de texto criados e armazenados no seu navegador, contendo informações pessoais que serão usadas para facilitar sua navegação na internet, preenchendo automaticamente sites que você costumar visitar, além de formulários e senhas. Mas não acaba por aí.
“Nomes, gostos, data de nascimento, sexo, interesses, o que conversamos no WhatsApp, isso vai para uma base de dados e lá é transformado em padrões usados para organizar nossa vida na internet”, explica Bicalho. Em resumo, seu tráfego pela web deixa rastros, como farelos de um biscoito, o que torna possível saber quanto tempo você passou numa página, quantas vezes voltou e o que costuma chamar mais a sua atenção.
Apesar da programação algorítmica ser feita por humanos, a captura, entretanto, se dá por meio de robôs, que codificam o comportamento e pesquisas do usuário na rede, transformando-os em dados, que podem ser usados de diferentes formas, por diferentes corporações, a exemplo de uma equipe de marketing de uma empresa, com o intuito de executar campanhas publicitárias para alavancar seus negócios.
Na busca de produzir resultados efetivos e satisscriptfatórios, é necessário que esses dados, também conhecidos como big data, sejam organizados e analisados de forma a criar uma base de informação estratégica para colher os resultados esperados. É aqui, portanto, que estão depositadas as esperanças de quem acredita que, através dessa quantidade gigantesca de pegadas que deixamos no terreno fértil da internet, seja possível desenhar o perfil do consumidor e prever quais serão seus próximos passos.
A Netflix, por exemplo, uma das gigantes do streaming, coleta todo tipo de dados de seus assinantes, desde a escolha de filmes e séries, tempo de visualização e pausas, para monitorar o comportamento dos usuários na plataforma e criar sugestões personalizadas de conteúdo, algo que a estudante Beatriz Pinheiro, 22, até prefere, mesmo ciente de que está sendo monitorada pela plataforma. “Eu gosto de ter indicações porque sou péssima em escolher algum conteúdo para assistir”, confessa. Pinheiro é fã da atriz Scarlett Johansson e, segundo conta, começou a perceber que a Netflix deixava alguns trabalhos da artista como sugestão na página inicial de sua conta. “De repente, eu já estava vendo tudo o que ela produziu e que estava disponível no cardápio do aplicativo”, finaliza.
Com uma gigantesca base de dados assim, a empresa pode apostar em projetos que deram certo e repetir o sucesso com a contratação de atores, roteiristas e diretores específicos, garantindo engajamento e fidelização de seu público.
PRIVACIDADE HACKEADA
“A gente está sob vigilância. O tempo inteiro”, afirma Leonardo Melgaço, 26, mestre em Comunicação e Sociabilidade Contemporânea pela UFMG. Quando questionado sobre os princípios do big data, Melgaço chamou a atenção para duas perspectivas que, segundo ele, de- vem ser levadas em consideração sobre
o assunto. “Se você me perguntasse isso em 2010, eu te responderia que big data é aquilo que está atrelado à quantidade de dados e à velocidade de processamento destes, o que demanda técnicas e procedimentos algorítmicos cada vez mais aperfeiçoados para gente poder fazer uma análise. Nesse sentido, é uma ferramenta tradicional da ciência da computação”, diz.
Hoje, no entanto, ele aponta outra definição. “Em 2020, big data é considerado, pelos profissionais críticos da área de comunicação digital, um discurso social atrelado a quem acredita que dados podem traduzir o nosso comportamento, tais como os estudos de consumo [que] valorizam dados vindos das mídias sociais”, analisa.
Em 2016, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou um estudo que confirmava que mais de 40% das decisões de compra e venda de ações no mercado do país eram feitas por robôs investidores, programados por algoritmos com a função de reagir instantaneamente às dinâmicas típicas das bolsas de valores. É, portanto, a crença na tecnologia como aparato de interpretação das vontades humanas que, no limite, hoje devem tocar “em questões de cidadania, porque a gente produz esses dados, mas quem controla, quem manda nesses dados?”, questiona Melgaço.
SUJEITO A TERMOS E CONDIÇÕES
Foi pensando nisso que, em setembro deste ano, entrou em vigor a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD): uma regulamentação que visa garantir segurança e transparência nos dados de cidadãos e consumidores do país. A lei foi criada com o intuito de estabelecer regras para o intercâmbio de informações.
De acordo com Silvia de Freitas Furtado, 36, essa preocupação com a segurança em torno dos dados pessoais começou a ganhar força no mundo a partir da campanha de Donald Trump à presidência dos EUA em 2016. “A forma como as eleições foram conduzidas, as dinâmicas das redes sociais e as estratégias de campanha política que Trump assumiu acabaram levantando toda aquela polêmica sobre a empresa inglesa Cambridge Analytica”, explica a jornalista e professora de Análise de Dados e Big Data no Centro Universitário UNA, citando o escândalo revelado em 2018 pelos jornais New York Times e The Guardian, quando se descobriu que o Facebook havia vazado informações pessoais de seus usuários para a Cambridge Analytica, que se utilizou desses dados para traçar um perfil psicográfico dos eleitores estadunidenses em prol da campanha do atual mandatário da Casa Branca.
Depois de muitas discussões sobre o assunto, em 2018, o Parlamento Europeu cria seu Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (General Data Protection Regulation – GPDR), que serviu de base para a elaboração da nossa LGPD, sancionada em 17 de setembro. Furtado explica que “além da LGPD, a legislação também prevê a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). É essa autoridade que vai executar e aplicar as multas e sanções, que só vão começar a ser aplicadas em agosto de 2021”.
Até lá, as empresas deverão começar a se adaptar às novas orientações, desde emitir avisos nos sites informando sobre as políticas de privacidade e cookies, até a criação de uma nova área nas corporações, responsável por controlar e garantir que esses dados estão sendo tratados de forma correta. “É o que estão chamando de DPO, ou data protection operator, o operador de dados, um funcionário ou setor da empresa que vai garantir que não há nenhum risco de vazamento de informações”, esclarece Furtado, acrescentando que, quando for o caso de tornar algum dado público, estes devem ser feitos de forma anônima, já que o novo ordenamento assegura que os dados são, afinal, propriedade de seus próprios usuários – quer sejam os que você concorda em disponibilizar na internet ou até os que oferece no balcão de uma farmácia.