Da dor sob Lua e Sol
Por Tássio Santos, aluno do 8º período de Jornalismo do UniBH
Era uma casa nada engraçada, não tinha teto, não tinha nada, mas tinha um ser que implorava por comida e melhores condições de vida. Acomodado em cima de um papelão, o recipiente vazio e o isopor com alimentos estragados remetiam à necessidade e à dura realidade dessas pessoas.
O carrinho de supermercado, que poderia estar com refeições, deu lugar a recicláveis e a um amontoado de roupas em condições deploráveis. O olhar tristonho, o choro engasgado e a face rubra não só traziam as marcas da idade, de dor e sofrimento, mas de uma história que, muitas vezes, é ignorada pela sociedade.
Em tempos de pandemia, ficar em casa é uma das principais medidas estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para evitar a proliferação do vírus que assola e, ao mesmo tempo, assombra o mundo inteiro. Contudo, como se isolar, se a casa de quem não tem onde morar é a rua? Como se proteger do vírus, se não há condições mínimas de higiene?
Não tem comida para matar a fome, não tem água para beber e, muito menos, para lavar as mãos, não tem máscaras para se proteger, não tem para onde correr, não tem acolhimento. Essa realidade está nas ruas, nos becos e vielas. Está nos grandes centros, nas periferias, nos passeios dos supermercados e na fila dos hospitais públicos.
Essa realidade está bem perto de nós, mas fingimos não ver, pois estamos muito preocupados com o horário do próximo ônibus. Corremos para não chegarmos atrasados ao trabalho, ajustamos a máscara no rosto, lemos o jornal e nos assustamos com os números de mais vítimas do coronavírus.
Será que, além das máscaras, vendamos os olhos? Será que, além de usar álcool em gel, lavamos as mãos para esse importante problema social? É preciso pensar nos efeitos colaterais da pandemia, e não imunizar a sensibilidade, a generosidade e a empatia, diante de quem tanto precisa, ainda mais agora.
Lockdown X Generosidade
A mão estendida pede por comida, moedas para o café, um cobertor. A voz embargada pede socorro, solidariedade e um mínimo de generosidade. Porém, com o fechamento do comércio, e a circulação cada vez menor de pessoas nos arredores, para evitar a propagação do vírus, pessoas em situação de rua sofrem ainda mais sem a pouca ajuda que recebiam de quem passava por ali.
Vulneráveis a infecções, desnutrição, diabetes, doenças psíquicas e tantas outras enfermidades, pessoas que vivem nas ruas estão altamente predispostas a ser infectadas pela Covid-19, pois o vírus não escolhe estrato social. Por estarem expostos em ambiente com circulação desenfreada do vírus, a probabilidade de serem infectados é gigantesca.
A casa nada engraçada é desprovida de saneamento básico, de materiais suficientes para se proteger da Covid e de outras doenças, que não devem ser anuladas. Se, em algum momento, esquecemos de higienizar as mãos ao sair e voltar para casa, ao ir ao médico ou ao supermercado, esquecemos, também, que ali, na próxima esquina, há alguém em busca de ajuda. E não apenas com falta de comida, roupa ou água, mas carente de cuidados, de um olhar e de orientação, de um lar que os proteja e ofereça condições necessárias de saúde. Tem alguém, bem ali, precisando de proteção.
O lockdown, como principal meio para evitar que a doença tome proporções ainda maiores, não obrigou apenas as pessoas com um lar a ficar em casa, mas confinou também a humanização, a empatia e a solidariedade. Sair de casa é estar vulnerável à doença, que já matou mais de 280 mil pessoas no Brasil em apenas um ano, de acordo com o Ministério da Saúde. Triste realidade, que preocupa e, ao mesmo tempo, estimula a reflexão acerca das intervenções a serem feitas, principalmente, para as pessoas em situação de rua.
Medidas como distribuição de máscaras gratuitas, alojamentos ou outro ambiente que assegurem essas pessoas, talvez minimizariam esse problema, talvez não solucionasse de vez, mas desse um respiro ou um alívio para essas pessoas que não têm nem máscaras, não têm comida e, muito menos, esperança de uma vida melhor e justa.
Acolher para proteger?
No passeio, é possível ver a garrafa de bebida vazia. O cheiro de álcool exala, como vício ou meio de esquecer os dias sombrios e tristes que só essas pessoas sabem muito bem o que são. Não dá para colocar o dedo na ferida de quem apenas busca por acolhimento ou por alguém que olhe para além dos seus trajes e da fisionomia, mas que perceba sua dolorosa condição social.
De acordo com o Cadastro Único do Governo Federal, em março de 2020, o número de pessoas em situação de rua chegou a 149.144. Se pararmos para pensar, são mais de cem mil pessoas passando fome, sem acesso igualitário a serviços básicos como saúde e educação. São mais de cem mil vidas expostas a uma doença, que pode deixar sequelas e, até mesmo, matar. São mais de cem mil pessoas invisíveis para a sociedade, uma realidade que parece distante, mas é tão próxima e, ao mesmo tempo, cruel.
Se o governo olhasse para essas pessoas de forma mais afetuosa, se as prefeituras criassem mais programas efetivos de acolhimento, se outras instituições introduzissem projetos sociais eficazes e duradouros, se o Ministério Público pudesse, verdadeiramente, transformar a realidade das pessoas, se nós, como sociedade, fôssemos menos egoístas e olhássemos para essas pessoas como seres humanos igualitários… mas o “se” não resolve o problema, é preciso fazer acontecer.
É preciso, urgentemente, pensar na coletividade. A pandemia nos ensina, a cada dia, sobre essa temática. Se não nos protegermos, estamos dispostos a sermos infectados e a infectar o outro também. Deixar de olhar para nosso próprio umbigo é um exercício que deve ser executado. Acolher não está intrinsecamente relacionado a acomodação, mas, também, a contribuição, a ajuda, a solidariedade, a saúde e a humanização – seja ela como for.