Tiradentes: entre mito e verdade

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Como se constrói um herói nacional?

Por Amanda Alves, aluna do 1º período de Jornalismo no UniBH

Como surge um herói? A história de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, sempre foi conhecida, mas começa a criar protagonismo na narrativa oficial do Brasil na segunda metade do século XIX, a partir do crescimento do movimento republicano, e se consolida com a instalação da própria república. 

Segundo Thais Nívia de L. e Fonseca, professora titular de história da educação e do programa de pós-Graduação em Educação da UFMG, com o tempo, Tiradentes se tornou um dos personagens mais populares da história nacional e ganhou status de herói, para simbolizar os ideais republicanos e fortalecer aspectos da identidade nacional a fim de inspirar a população. Mas quais ideais são esses? Trata-se, principalmente, de valores como o auto sacrifício em favor da liberdade, da coragem de lutar por um ideal e um desejo de afastamento dos republicanos do imaginário de seu passado colonial brasileiro. 

Neste sentido, a luta protagonizada pelos inconfidentes mineiros foi entendida como uma narrativa perfeita para representar esses ideais, tão caros aos republicanos.De acordo com Carlos Ballarotti, mestre em história social e pesquisador na área de história ambiental Tiradentes não foi criado pela República, mas sua imagem foi apropriada pelos vencedores, uma vez que o novo regime necessitava de uma figura forte que apagasse o então herói D. Pedro I, a imagem forte da monarquia. Por isso foi Tiradentes, mais do que seu grupo, que serviu apropriadamente como representante deste ideário.

Primeiro por seu caráter médio, de fácil identificação. Tiradentes era um oficial militar subalterno, o que equivaleria ao posto de segundo tenente atualmente. Como conta Thais Nívia de L. e Fonseca, não é difícil perceber as possibilidades de aceitação dessa representação junto ao público em geral, a partir de uma percepção deste Tiradentes que, apesar de pobre e fraco, poderia simbolizar as conquistas de toda uma nação.

Um segundo aspecto que influenciou na escolha de Tiradentes como principal herói da república diz respeito ao seu destino na narrativa da inconfidência mineira, que foi certamente o mais trágico. A figura do mártir, daquele que se oferece em sacrifício, teve e tem certamente um grande apelo no imaginário popular.  

Imagens e idealizações

“Tiradentes era, nos primeiros anos da república, tão “endeusado”, que a todos pareceu natural se lhe atribuísse a mesma face de Cristo. Sim, os primeiros quadros que representam nosso herói tiveram como modelo o próprio Cristo.” 

Waldemar Barbosa

O trecho acima, disponível numa publicação do Instituto Histórico e Geográfico de São João del Rei, trata de uma questão importante em relação à fisionomia do alferes elaborada pelos artistas que, de maneira intencional, se assemelha à imagem de Cristo. Visto que não havia referências sobre o rosto de Tiradentes, restou aos artistas imaginar que feições ele teria. No entanto, existem indícios históricos que contradizem essa construção da imagem do Tiradentes com barba e cabelos longos. 

De acordo com a tese escrita por Mariana de Carvalho Dolci, mestre em história social pela PUC-SP, era vedado aos militares cultivar a barba e é sabido que eram disponibilizados aos encarcerados inconfidentes, além de um advogado, um barbeiro para atendê-los durante o período da prisão. É quase certo, portanto, que o alferes não ostentassem a barba longa. O Tiradentes, barbudo e de longos cabelos, que temos no imaginário, é algo fruto da vontade de referenciar o caráter e os valores cristãos através da fisionomia próxima das feições de Jesus Cristo. Algo que se apresenta também sob o aspecto do sacrifício em prol de um bem maior e coletivo, características comuns a ambas as histórias. 

É possível apontar, na história de Tiradentes, outras incongruências importantes que indicam imprecisões na narrativa alentada pelos partidários da república. É correto dizer que a inconfidência mineira não lutava pela independência do Brasil em relação à Portugal, uma vez que não existia esse sentimento de união nacional das capitanias. É mais correto dizer que esse grupo pleiteava uma independência da região de Minas Gerais e proximidades, possivelmente parte de São Paulo,já que eram locais conhecidos pelos inconfidentes mineiros. Mesmo que a figura de Tiradentes sirva a um propósito de união da nação em torno de um herói nacional, em sua essência, a história por si, não compactua com esse sentimento de unidade. 

Imagem: Museu Histórico Nacional/Rio de Janeiro

Acima está a  imagem que mostra uma construção artística do rosto de Tiradentes, feita em 1890, usando a técnica da litografia.Seu autor é Décio Villares. De acordo com Maria Alice Milliet, pesquisadora da iconografia de Tiradentes, ela foi impressa e distribuída à população na primeira data do calendário republicano. Hoje, essa imagem é parte do acervo do Museu Histórico Nacional, localizado no Rio de Janeiro.

Imagem: domínio público

A imagem acima é uma das representações mais conhecidas de Tiradentes, feita por Pedro Américo, em 1893. Atualmente, a pintura é referência como imagem de Tiradentes, mas na época em que foi exposta pela primeira vez foi rechaçada pelo grupo republicano, por mostrar o corpo esquartejado de Tiradentes, o que podia ser lido como um esfacelamento da imagem da república. 

Imagem: Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro

Martírio de Tiradentes foi pintada por Aurélio de Figueiredo, irmão de Pedro Américo, também em 1893. Concluída no mesmo ano que a obra de Américo, esta imagem teve mais aceitação por parte dos republicanos por retratar Tiradentes ainda vivo e com uma postura que invoca dignidade e voluntarismo, por estar no momento em que se entrega ao sacrifício na forca. 

Imagem: Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro

A imagem acima foi produzida por José Walsht Rodrigues, em 1940. Intitulada Alferes Joaquim José da Silva Xavier, a pintura apresenta uma interpretação da figura de Tiradentes mais de acordo com a pesquisa histórica sobre o personagem. Tiradentes já aparece sem barba e com o uniforme militar da época.

Fizemos algumas perguntas sobre TIradentes ao professor de história do UniBH, Luis Felipe Arreguy: 

 

Quando a figura de Tiradentes é alçada à categoria de herói nacional?

Tiradentes surge como herói nacional a partir da República (1889), pois uma das críticas dos inconfidentes era à monarquia, que não termina com a Independência e sim com a Proclamação da República. O republicanismo era um dos ideais da inconfidência, inspirada pela Independência dos Estados Unidos.

Qual a história das comemorações do dia de Tiradentes em MG? (evento da transferência temporária da capital mineira para ouro preto no dia 21 de abril, dia de Tiradentes) 

A transferência da capital de Minas para Ouro Preto ocorreu como uma forma de homenagear Tiradentes e o movimento da Inconfidência (Conjuração) Mineira, que teve Vila Rica (Ouro Preto) como berço.

Como interpretamos o mito de Tiradentes hoje?

No campo da História já há algum tempo discute-se o papel e uso de Tiradentes numa perspectiva de construção da identidade nacional, com variados interesses e narrativas.

Conheça um trecho da sentença que condenou Tiradentes:

“Portanto condenam ao Réu Joaquim José da Silva Xavier por alcunha o Tiradentes Alferes que foi da tropa paga da Capitania de Minas a que com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas publicas ao lugar da forca e nella morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em lugar mais publico della será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes pelo caminho de Minas no sítio da Varginha e das Sebolas aonde o Réu teve as suas infames práticas e os mais nos sitios (sic) de maiores povoações até que o tempo também os consuma; declaram o Réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens applicam para o Fisco e Câmara Real, e a casa em que vivia em Villa Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique e não sendo própria será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados e no mesmo chão se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infamia deste abominavel Réu.”

Os juízes que condenaram Tiradentes e assinaram a sentença apenas com o sobrenome foram:Sebastião Xavier de Vasconcellos Coutinho (Chanceler da Rainha); Antônio Gomes Ribeiro; Antônio Diniz da Cruz e Silva; José Antônio da Veiga; João de Figueiredo; João Manoel Guerreiro de Amorim Pereira; Antônio Rodrigues Gayoso e Tristão José Monteiro

Disponível em: http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/10/docs/14-_curiosidades-_sentenca_de_tiradentes.pdf



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