Fenômeno do terror, do drama e do marketing, filme de 1999 brinca com a nossa mente da mesma forma que a bruxa faz com os protagonistas.
Por Thiago Toledo, aluno do 6º período de Publicidade e Propaganda
Burkittsville, Maryland, 1994. As buscas por três jovens desaparecidos na floresta de Black Hills continuam. Uma mochila pertencente ao grupo foi encontrada enterrada embaixo de uma casa abandonada na floresta. Em seu interior, as equipes de busca encontraram câmeras, fitas e rolos de filme, mas ainda sem sinal de Heather Donahue, Joshua Leonard e Michael Williams, que foram vistos pela última vez na pequena cidade. Os estudantes gravavam um documentário investigando uma antiga lenda local que assombra os moradores há séculos, desde quando existia uma simples vila no local com o nome de Blair.
É com este pretexto que o filme A Bruxa de Blair (1999) se inicia. No longa-metragem, acompanhamos o conteúdo das gravações feitas pelos três jovens “desaparecidos”. O filme foi responsável por popularizar o found-footage, gênero onde acompanhamos a história por meio de câmeras manuseadas pelos próprios personagens, e foi vendido como uma história real, levando muitas pessoas a acreditarem fielmente nos acontecimentos retratados pelo drama. As famílias dos atores até receberam cartas de pessoas que assistiram ao filme, em solidariedade ao desaparecimento dos estudantes.
É até compreensível que várias pessoas tenham acreditado que o que foi retratado no filme aconteceu na vida real, afinal, os diretores do projeto, Daniel Myrick e Eduardo Sanchez, trabalharam duro para tornar a obra impressionantemente crível.
Os atores tinham contato extremamente reduzido com a equipe de produção durante as filmagens na floresta. Com o passar dos dias, tal contato se reduziu ainda mais com o intuito de fazer o grupo se sentir realmente sozinho, buscando arrancar deles o medo genuíno de estarem perdidos, com comida escassa, acampando noite após noite em uma floresta amaldiçoada. O roteiro do filme deixava a maior parte das interações entre os personagens abertas a improvisações, o que fez com que os atores vivessem na própria pele o que os personagens viviam, inclusive os sustos, arquitetados pela equipe de produção.
Foram oito dias isolados na floresta lidando com o frio, a fome, o medo e com as próprias mentes. O realismo passado ao público é assustador, e talvez este seja o maior trunfo do filme, que apesar de ser do gênero terror, vende bastante drama e melancolia. Você se perde junto dos personagens, se desespera junto deles ao cair da noite, e até mesmo perde as esperanças de que todos sairão bem daquela experiência.
E como se não bastasse a sensação de realismo dentro do filme, ainda existiram fatores externos para corroborar com este sentimento.
A campanha
Além dos cartazes e do uso dos nomes reais dos atores em seus personagens, um site havia sido colocado no ar um ano antes do lançamento do filme nos cinemas, contando tudo o que se sabia sobre o desaparecimento e o projeto do trio. Na página, era possível encontrar reportagens de telejornal e jornal impresso sobre o caso, entrevistas com amigos e professores, tudo produzido pelos diretores com o intuito de enriquecer a experiência do filme e alimentar os mistérios em torno do mesmo.
Mas o que realmente começou a chamar a atenção para A Bruxa de Blair e a lenda investigada pelos estudantes foi um documentário televisionado no canal norte-americano, Syfy, alguns meses antes do lançamento do filme, dissecando a lenda da bruxa, a história da cidade de Burkittsville e trazendo entrevistas, cortes de reportagens sobre os desaparecimentos, documentos históricos que retratam mortes macabras na floresta de Black Hills, depoimentos de investigadores da polícia, historiadores e cidadãos locais sobre diversos casos ligados à bruxa. O documentário também conta com cenas do filme, que estava para ser lançado, e entrevistas com amigos e professores dos estudantes desaparecidos.
Em Curse of the Blair Witch também é destrinchada a própria lenda da bruxa. Era a história de uma mulher chamada Elly Kedward que, no final do século XVIII, foi caçada pelos aldeões de Blair após crianças da vila alegarem que foram seduzidas a entrar na floresta e utilizadas em experimentos da bruxa. Após ser pendurada em uma árvore, exposta a um rigoroso inverno e atacada por cachorros e por pessoas do vilarejo, a mulher finalmente faleceu. Nos meses seguintes, porém, todos os seus acusadores e metade das crianças da vila desapareceram, o que levou ao abandono da vila, cujo território só foi utilizado novamente séculos depois, com a construção da cidade de Burkittsville.
O documentário traz relatórios policias, cópias de um suposto livro de feitiços, ilustrações, manchetes de jornal e registros oficiais de todos os casos relacionados à bruxa através dos séculos. Inclusive, a condenação de Rustin Parr, na década de 1940. O confesso assassino de sete crianças da cidade de Burkittsville alegou ter sofrido influências da bruxa após anos morando em uma casa no meio de sua floresta.
Após ver o documentário, você certamente se pergunta quão malucos são os diretores por colocarem a vida de três jovens atores em risco ao escolherem rodar o filme na exata floresta em que não apenas crianças foram mortas em circunstâncias estranhas, mas também adultos que buscavam por desaparecidos foram encontrados dilacerados. E é aí que está o grande diferencial de A Bruxa de Blair: a própria lenda foi criada por Myrick e Sanchez. Todos os documentos, todos os depoimentos, reportagens, manchetes e eventos foram fabricados, forjados em prol de uma história bem contada e convincente. A dupla escolheu o formato de documentário para as produções justamente por sentirem que este gênero é capaz de transmitir o medo melhor do que um filme de terror nos moldes já conhecidos, justamente por trazer um tom de realismo que os diretores abraçaram tão bem, não mostrando nenhum fenômeno sobrenatural em câmera, por exemplo. Toda a construção do projeto da Bruxa de Blair se assemelha também a um manifesto do cinema dinamarquês, escrito quatro anos antes do lançamento do filme.
Dogma 95
Em 1995, tentando resgatar a essência artística do cinema e se desprender do desejo comercial, os cineastas Thomas Vinterberg e Lars von Trier iniciaram o movimento conhecido como Dogma 95. Suas regras, nomeadas de Votos de Castidade, pregavam que o cinema fosse feito da forma mais natural possível, sendo proibidos a adição de sons que não estão em cena, truques de câmera e filtros, construção ou produção de cenários e utilização de estúdios. As filmagens deviam ser feitas à mão, mesmo que a câmera balance, e não podiam ser utilizadas iluminações especiais, apenas a luz ambiente. O movimento também não aceitava filmes de gênero e ações “superficiais” nos longas, como armas e assassinatos.
As regras do Dogma deviam ser seguidas à risca para que um filme fosse considerado pertencente ao movimento, o que era bem difícil, pois algumas limitavam bastante o exercício do cinema. Ao abordá-las de forma flexível, porém, e sem se preocupar em cumprir com os mandamentos, resultados muito interessantes podiam ser obtidos. O próprio projeto da Bruxa de Blair se utiliza bastante, e de forma bem fluida, das regras do Manifesto, firmando um compromisso apenas com a história que os diretores queriam contar.
A disseminação da construída lenda da Bruxa de Blair se tornou mais forte ainda com a evolução da internet. Os eventos de sua história, para muitos, ainda se confundem com a realidade. Esta presença forte na cultura mundial até hoje só nos mostra como o trabalho de marketing deste projeto foi impecável, criando a própria lenda e abrindo portas para a exploração de diferentes mídias, como o videogame, e histórias dentro deste universo.