Em entrevistas exclusivas ao Jornal Impressão, especialistas em educação apontam os principais desafios para o acesso igualitário à educação de qualidade
Por Carolynne Furtado
A educação é, certamente, uma das áreas mais importantes para o desenvolvimento social dos países. Foi pensando nesse avanço, que a Organização das Nações Unidas (ONU) criou o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) número 4, que preza pela educação de qualidade, presente no plano da Agenda 2030, que estabelece mais 16 objetivos.
Esse plano global representa um marco histórico para que as gerações futuras possam avançar para um mundo melhor, com educação garantida a todos. As metas provocadas pelo ODS visam mudar o campo estudantil, com professores mais qualificados, acesso à escolarização nas zonas rurais, maior distribuição de bolsas estudantis e acessibilidade.
Segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mesmo com uma diminuição na taxa de analfabetismo, o Brasil ainda apresenta 11 milhões de brasileiros que não sabem ler e escrever. Os analfabetos, como são caracterizados, são cidadãos que possuem 15 anos de idade ou mais.
Dados como esses são alarmantes, visto que a população jovem tem grande influência social no país. Diante desses acontecimentos, é necessário redobrar os esforços para contribuir positivamente com o ODS. Em meio a todo esse caos educacional, nos últimos anos, houve o surgimento de inúmeros projetos que fazem total diferença e evitam que os 6,8% dos analfabetos avancem para dados mais assustadores.
Mão na massa
O projeto Amigos do Bem é um exemplo, que surgiu em 1993 e, desde então, traz inovações e transformações para os sertões de Alagoas, Pernambuco e Ceará. Com uma variedade de programas educacionais para crianças e jovens das comunidades, essa ação conta com 4 centros educacionais, 500 bolsas de estudos, cursos profissionalizantes e 10 mil crianças escolarizadas. Um dos pontos mais altos desse projeto é contar com a administração de Luiza Helena Trajano, a fundadora do Magazine Luiza. No site oficial, eles explicam o porquê de escolher o Nordeste. “Um lugar onde milhões de pessoas nascem, sofrem e morrem, sem perspectiva de futuro.
A má distribuição de renda e a situação de abandono são agravadas pela seca, condenando milhões de nordestinos à extrema pobreza”.
Além de transformar a educação, o projeto também trabalha ativamente na erradicação da fome e da pobreza, de acordo com Alcione Albanesi, presidente do projeto. “Fazer o bem é a sensação de dever cumprido perante a vida. Acredito em um Brasil melhor para as futuras gerações, um país sem tantas desigualdades”, explica ela.
Pensar o Brasil
Na busca ativa por ações que impactam positivamente a educação, também surgiu o projeto Pensar a Educação, Pensar o Brasil, desenvolvido por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O projeto articula ações de ensino, pesquisa e extensão em universidades públicas brasileiras, na busca por alternativas para se pensar o Brasil a partir de uma reflexão sistemática sobre um dos grandes desafios do nosso tempo: a educação pública.
Doutora em Educação pela UFMG, Vanessa Macedo é uma das coordenadoras do projeto. Em entrevista ao Jornal Impressão, ela conta a história do projeto, promove reflexões sobre o assunto e nos ajuda a entender sua importância para o Brasil.
Como o “Pensar a educação, pensar o Brasil” impacta a educação?
O projeto nasceu em 2007, e um dos objetivos é qualificar o debate da educação do cenário público. A educação sempre se colocou como um tema estratégico para a formulação dessas nacionalidades, bem como desses projetos no Brasil. Então, a nossa missão vem dessa constatação que, nas primeiras décadas do século 20, especialmente até a década de 40, muitos intelectuais estavam discutindo educação no cenário público e, à medida que as universidades vão se estruturando, vão se estabelecendo como lugares de “pensação” desses especialistas, especialmente no que diz respeito às mídias, aos jornais, aos impressos.
Então, o principal interesse que a gente estabelece no projeto é ampliar esse debate da educação no cenário em que nós temos hoje, em que nas grandes mídias não existe a presença de professores ou é pouca, bem como a de especialistas em educação. A forma que nós intencionamos em impactar é justamente na ampliação desse debate, onde a sala de aula, as experiências desses professores sejam consideradas, na medida em que discutimos sobre violência escolar, sobre evasão, sobre reprovação. Então, não diz respeito só a um cálculo econômico ou a índices de avaliações, mas diz respeito também ao modo como professores estão cotidianamente lidando com essas questões e encaminhando soluções dentro da sala de aula. É desse modo que a gente quer impactar a educação brasileira, qualificando a educação com presença do professor, com a presença das suas reflexões e suas experiências. A princípio, usar a presença do professor, seja como público, seja produzindo conteúdos nos jornais, revistas de educação básica e no nosso programa de rádio.
O projeto mantém uma relação com os 200 anos de independência do Brasil. Você poderia falar um pouco sobre isso?
Em 2022, nós vamos comemorar o centenário da Independência. E há 100 anos, no início do século passado, nós estávamos discutindo sobre que país é o que temos. Podemos falar sobre a Semana de Arte Moderna, podemos falar sobre diversas movimentações, nos campos da arte e da política. A gente teve um cenário forte e quente de discussões sobre qual é o país que comemoramos 100 anos atrás e sobre qual o país que queremos formular 100 à frente.
A constatação que a gente tem é que esse debate do cenário da Independência está bem fraco. Com certeza a gente não vive um cenário como de 100 anos atrás, isso é óbvio, mas a questão é que a disputa dessa identidade de país, de nação, ela não está em discussão e é justamente o chaveamento que nosso projeto tem. É reconhecer que é importante se discutir no cenário público sobre qual país queremos, no sentido de como esses projetos estão sendo encaminhados, como estão sendo formulados. E no campo da educação, quais os projetos estão sendo estabelecidos no cenário público? Se podemos afirmar que 100 anos atrás a gente tinha diversas formas de pensar no ensino secundário, uma vez que ele não era completamente estabelecido, como é que ele vai funcionar, qual público vai receber?
Especialmente porque, nesse momento, a gente tinha disputas no que diz respeito à formação de elites econômicas para desenvolvimento do país. Essa discussão está relativamente adormecida e esses momentos de comemorações que são contundentes com a história do país nos fazem ter o movimento de olhar para o passado e de pensar o futuro.
Sobre as ações do projeto, que incluem rádio, gestão de mídias e seminários, como funcionam?
O que é fundamental dizer sobre as ações do projeto, que cresceram ao longo tempo, é não apenas o seminário, mas logo após nós criamos um programa de rádio na UFMG Educativa, criamos revistas, criamos também um lugar de reflexão nas próprias redes sociais, questão de mídia. E, agora, com a pandemia, surgiram duas novas ações, que são as lives e o podcast. Essas ações representam suporte de mídia. A revista é um suporte de mídia, o seminário é forma de divulgação, assim como também a rádio. Elas funcionam como uma forma de circular a informação, importante que a discussão sobre a educação seja estabelecida de diversas formas. Eu estou diretamente ligada a duas ações, que são a Revista Brasileira de Educação Básica, um periódico voltado a professores da educação básica, bem como pesquisadores que lidam com a educação básica e professores em formação, e o podcast, que se chama “Pensar Depois da Aula”. Em cada uma dessas mídias a gente reflete como o debate da educação pode ser ampliado.
Como funciona a publicação dos livros pela Mazza Edições, que abordam temas sobre a educação no Brasil?
Nós temos uma parceria longa com a editora e, a princípio, ela contribui para a circulação dos temas que falamos em nossos seminários, então o livro alonga as discussões que são feitas lá. Uma das premissas de fundamental importância do ODS 4 é a qualificação dos professores, que são o estopim para qualquer mudança social na vida de crianças e adolescentes. É necessário um olhar mais apurado para os níveis de formação na hora de lecionar, pois muitos não possuem formação na disciplina em que ensinam. Segundo as metas do Plano Nacional de Educação (PNE), até 2024, 50% dos professores do ensino básico no Brasil devem se formar em nível de pós-graduação e todos precisam receber formação continuada em sua área de atuação.
É difícil falar sobre educação e não falar sobre ciência, e sobre os impactos e os avanços que ela trará futuramente. Essas evoluções têm se mostrado cada vez mais efetivas e com maior abertura para novos projetos sociais.
Ciências da educação
Também em entrevista ao Jornal Impressão, Silvania Sousa do Nascimento, pesquisadora científica da UFMG, explica sobre os avanços citados por Vanessa Macedo e quais os impactos para o país e para a educação.
Você já publicou muitos textos e artigos científicos extremamente relevantes. Na sua opinião, quais as principais contribuições da ciência para a educação básica?
Eu trabalho na área das Ciências da Educação. Uma área interdisciplinar na qual conversam, no caso da Educação em Ciências e Tecnologia, com contribuições de diferentes campos, como filosofia, sociologia, psicologia e linguística. Essa ciência investiga os processos e situações de ensinar e aprender em espaços escolares e não escolares e suas pesquisas impactam diretamente na formação de professores, na produção de espaços de aprendizagem, no desenvolvimento de materiais didáticos e paradidáticos, nos processos de avaliação individuais e sistêmicos, na produção e análise dos percursos escolares. Já as ciências, no sentido amplo, contribuem indiretamente, de meu ponto de vista, tanto na educação básica como na sociedade como um todo, ao oferecerem novas perguntas e novas soluções para nossas relações com o ambiente e com os objetos. A ciência transforma nosso modo de viver e pensar o mundo próximo e distante.
Entre os principais objetivos do ODS 4, da ONU, está o aumento da qualificação dos professores. O tema de um dos seus artigos mais recentes é sobre jogos eletrônicos na formação de professores, uma ideia muito revolucionária para o meio acadêmico. Você poderia explicar um pouco mais sobre o artigo e a proposta de ensino?
A gamificação pode ser considerada a arte de aplicar elementos dos jogos em situações sociais diversas. Na formação profissional, essa dinâmica já é bastante aplicada em simulações de situações complexas onde a regra, a formação de alianças estratégicas para o cumprimento de uma tarefa colaborativa, a avaliação das punições e recompensas são importantes para o sucesso do desenvolvimento de um produto. Na educação, principalmente dentro do contexto da pandemia, o uso das metodologias ativas se tornou mais efetivo, e a cultura dos jogos eletrônicos entrou definitivamente nos cenários de aprendizagem. O artigo em questão analisa uma situação de formação de professores de física, no sistema remoto. Para tais profissionais, o desenvolvimento de competências que envolvem a argumentação, o pensamento computacional, a análise de sistemas complexos, facilita a construção de cenários narrativos que usam estratégias presentes nos jogos eletrônicos. No contexto do artigo foram analisadas as interações para o desenvolvimento colaborativo de um cenário de um jogo eletrônico pensando, entre outras, o desenvolvimento de habilidades específicas do campo das ciências da natureza.
Quais assuntos você considera importantes de serem abordados em feiras de ciências, que possam possibilitar a comunicação e o contato científico na educação básica?
As feiras de ciências compõem um dos cenários educativos que estudo. Em geral, elas estão inseridas no projeto pedagógico do professor ou da escola com o objetivo de desenvolver a análise crítica de situações complexas locais. A feira em si é o momento de mostrar os resultados de um projeto de investigação escolar. Nesse momento, as diferentes formas de comunicação dos resultados e a argumentação com o público são as principais competências desenvolvidas nos grupos de estudantes. Aplicando princípios da metodologia de projetos, os temas para uma feira de ciências podem ser diversos e os mais efetivos são aqueles escolhidos pelos próprios estudantes diante de uma realidade local. Esse exercício de análise de problemas locais é importante para dar sentido aos conteúdos escolares.
Esses objetivos de desenvolvimento irão desencadear ainda mais o avanço da ciência. Quais serão os principais desafios causados por tal avanço em países subdesenvolvidos?
Os ODS terão certamente impacto na produção científica mundial, não necessariamente representando um avanço, mas uma qualificação das perguntas da tecnociência, que vem crescendo exponencialmente na medida que o poder de processamento de informações cresce. Não penso que os avanços provocarão novos desafios, e sim o agravamento das diferenças entre os países que produzem ciências e tecnologia e aqueles que as consomem.
Há muitas formas de classificar os países, eu não uso a nomenclatura de países subdesenvolvidos pois ela carrega um julgamento econômico que creio não ser o atual. Pensando na Agenda 2030 da ONU, o enfrentamento às desigualdades sociais e da pobreza no planeta perpassa, como desafio, todas as economias mundiais. O maior desafio planetário não é somente científico, mas também político e social. As sociedades mais industrializadas geram riquezas e misérias, e distribuem de forma desigual tanto suas riquezas quanto suas misérias. Um exemplo pode ser dado em relação ao impacto planetário do modo de vida estadunidense. Um cidadão estadunidense tem um impacto na mudança climática representado pelo seu consumo energético muito maior do que um agricultor africano. Aquelas economias não industrializadas e que têm baixos índices de desenvolvimento humanopossuem desafios em escala muito diferente! Há muitos movimentos, inclusive oriundos de coletivos ligados à produção das ciências, que colaboram com esses países para o cumprimento dos ODS. Mas a solidariedade entre as nações é um projeto que ainda não tem caminhos bem definidos. Veja, por exemplo, o consórcio para a compra e distribuição das vacinas contra a Covid-19.
O Brasil é uma das maiores economias do planeta e, hoje, não é mais considerado em desenvolvimento, ainda que se agravem problemas cruciais como o acesso à água, a concentração de renda ou a baixa escolarização dos trabalhadores.
Ter metas e objetivos não é tudo quando existem empecilhos no avanço. Você acredita que, de fato, a educação pode evoluir em tão pouco tempo?
Eu não tenho uma posição epistemológica na qual a ciência seja um motor de progresso. O desenvolvimento das ciências sempre representou uma ampla reflexão sobre o que um grupo social define como fato científico e como esse fato será tratado. Há temas eleitos politicamente pela comunidade científica em um contexto social que ocupa a agenda da comunidade com prestígio e financiamento, gerando respostas tecnológicas mais ou menos adequadas. Nem sempre as respostas das ciências representam um avanço social e os obstáculos nem sempre são de natureza educativa ou científica. As tecnologias sociais e comunicacionais contribuem muito para as melhorias educacionais e as pesquisas sobre os processos de ensino e aprendizagem trazem respostas efetivas para muitos problemas educacionais no momento. Por exemplo, o uso de combustíveis fósseis. Será que a ciência não tem uma solução tecnológica para reduzir a produção de CO2 oriundo da queima desses combustíveis? Será que o problema do analfabetismo nas mulheres pode ser reduzido apenas com uma educação de qualidade, e que qualidade é essa? Ter metas e objetivos mobilizam a discussão para construção de caminhos possíveis, do meu ponto de vista.
Analisando o seu histórico, há diversas formações, incluindo uma na França. Quais as maiores diferenças de estudar em um dos países mais desenvolvidos economicamente? Falta muito para que um país subdesenvolvido possa se igualar educacionalmente?
Tenho participado de equipes internacionais que analisam sistemas educativos em diferentes países. Por exemplo, orientei uma investigação sobre o processo de formação de professores em Angola, um país que está em um processo de reconstrução depois de anos de guerra civil, com o desafio de reconstrução de todo o sistema educativo. É um país que, como o Brasil, enfrenta desafios econômicos, políticos e educacionais. Os países economicamente estabilizados enfrentam problemas diferentes. Na França, por exemplo, há a pressão dos grandes fluxos populacionais como do leste europeu, do norte da África, do meio oriente, entre outros. Acompanhei turmas de alfabetização multiculturais onde havia crianças de nacionalidades diferentes e matrizes linguísticas muito diversas: hundu, madarim, pashto, coreanos, árabe… este é um grande desafio educacional. É um desafio semelhante ao que enfrentamos na formação intercultural de nossas comunidades indígenas, visando a manutenção das línguas e dos modos de viver das populações originárias do Brasil.
As diferenças não são muitas e sempre existiram, o que precisamos é aprender a trabalhar com e nas diferenças. Nossa educação como campo de investigação colabora muito com os países industrializados com propostas teóricas, como os momentos pedagógicos propostos por Paulo Freire e o letramento educacional proposto por Magda Soares. Produzimos uma educação de qualidade com respostas adequadas à nossa realidade. Temos grandes desafios, como o acesso à educação, permanência das camadas vulneráveis no sistema educativo, inclusão sociocultural, formação profissional de qualidade, valorização dos profissionais de educação. Nosso problema é de escala, a escala populacional é muito diferente, logo os problemas regionais são diferentes. Temos também um legado negativo, pois vivemos anos de descaso em relação à oferta de vagas e condições de permanência para os diferentes níveis educacionais, promovendo a retenção e a evasão de grupos sociais economicamente desfavorecidos. Nós temos o maior programa de distribuição de livros didáticos de qualidade do mundo, com um processo de avaliação e logística de distribuição modelar. Temos um modelo de formação intercultural das comunidades indígenas igualmente modelar que, como nosso SUS (Sistema Único de Saúde), é observado e modelado para países industrializados e não industrializados. Temos um problema de financiamento dos sistemas educativos que vem melhorando (se não houver retrocesso) e uma questão de oportunidades de aprendizagem que está relacionada à distribuição de renda. As desigualdades sociais geram desigualdades educacionais.