Empreendedorismo de mulheres negras: desafios e conquistas

Estudo “Empreendedorismo Negro no Brasil” identificou que pouco mais da metade dos empreendedores negros(as) são mulheres

Por Mylene Melo

Criar sua própria fonte de renda pode ser o sonho de muitas pessoas, mas com um desenrolar econômico e político complicado, o Brasil torna-se um país difícil para empreender. Contudo, com um mercado de trabalho também não muito promissor, o empreendedorismo torna-se uma necessidade.

A Organização das Nações Unidas (ONU) criou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. São 17 metas a serem cumpridas para fazer das nações lugares melhores social, econômica e climaticamente. O oitavo dentre esses objetivos estabelecidos é “Trabalho decente e crescimento econômico”, que busca promover o crescimento econômico, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos.

Enquanto observa-se um nicho complexo como o mundo do trabalho e dos empreendedores, existe um ainda mais específico: o de mulheres negras empreendedoras. As lutas enfrentadas por elas podem se diferenciar das demais por suas vivências também serem diferentes.

Para compreender melhor esse cenário, a Preta Hub, um espaço de criatividade, inventividade e tendências pretas, desenvolveu um estudo no ano de 2019. Com o nome “Empreendedorismo Negro no Brasil”, tal estudo identificou que um pouco mais da metade dos empreendedores negros(as) são mulheres.

Empreender no Brasil

O relatório Doing Business, realizado pelo Banco Mundial, traz outra informação importante: o Brasil é considerado um dos países mais difíceis de empreender, ocupando a 124ª posição em um ranking fruto da análise das regulamentações aplicáveis às empresas de 190 países.

Thais Ramos, criadora da De Benguela, a primeira loja no Brasil especializada em diferentes texturas de cabelo crespo natural para alongamentos e apliques, nos ajuda a entender essa realidade. “O Estado não colabora, é tudo extremamente burocrático. As divisões não são feitas de uma forma justa, então às vezes você é uma pequena empresa e é tratada como se fosse a Magazine Luiza”, explica ela.

Com a experiência de ter morado na Espanha por alguns anos, Thaís ainda revela um ponto positivo em nosso mercado em comparação ao que viu no exterior. Para ela, o povo brasileiro é aberto ao novo, à criação de novos produtos, o que faz do Brasil um país de oportunidades.

Já Kelcinara Ribeiro, que desenvolveu sua própria marca, a Kel Trufas, traz um outro olhar. “Hoje o empreendedorismo está forte, está na veia das pessoas, na hora da necessidade, na hora da dificuldade, o brasileiro empreende. Porque o brasileiro pode ter até dificuldade de empreender, mas ele tem sangue, ele tem vida, ele tem prazer, e quando ele começa a vender e ver que o negócio dá certo, aquilo vai trazendo mais vida para ele”, conclui.

As mulheres e seus negócios

A empresa de Thais, De Benguelas, nasceu de uma necessidade que ela mesma tinha e, através da criação do negócio, pode também ajudar outras mulheres e homens, os levando a uma reconciliação com seus cabelos naturais. Os alongamentos em aplique, que foram produzidos inicialmente por ela, hoje já alcançam o Brasil e chegam a ser utilizados por figuras públicas como Taís Araújo e Maju Coutinho, que se tornaram clientes.

Mas, apesar da De Benguelas não ter sido um negócio que iniciou por necessidade financeira, o primeiro empreendimento de Thaís, sim, nasceu de um cenário mais parecido com esse. “Eu me formei em Direito na Espanha, e quando eu decido voltar para o Brasil por conta da crise econômica espanhola, em 2012, eu chego aqui e preciso fazer alguma coisa porque eu não consigo revalidar meu diploma. Então, foi isso que me levou a empreender, foi uma necessidade por conta da minha formação”, explica ela.

Já Kel, que entrou no ramo do empreendedorismo com sua empresa de trufas em Nova Lima, Região Metropolitana de Belo Horizonte, conta que seu trabalho com chocolates começou há 14 anos, quando uma amiga lhe ensinou algumas técnicas e sua paixão nasceu. Mas o empreender mesmo não aconteceu por um bom momento. Foi a saída encontrada quando ela foi demitida de uma empresa em que trabalhou durante oito anos. Na busca por uma solução, levou em consideração o “sangue empreendedor” que considera vir de sua família. Hoje, ela é a única pessoa em sua equipe.

Kel revela não ter tido muita dificuldade em encontrar o público da Kel Trufas. Por conhecer muitas pessoas, dos mais variados espaços, a empreendedora consegue fazer com que seus produtos sejam conhecidos. Sobre seus diferenciais, ela garante que estão em todo o processo, mas principalmente no contato com os clientes. “Eu sempre fui muito bem recebida porque, antes de vender o produto, você tem que ser carismática, você tem que ter algo antes de oferecer o produto, e esse algo é a simpatia, empatia, alegria”, defende.

Atualmente, Kel já evoluiu seus produtos. Além das trufas, ela consegue renda através da venda de chocotones, ovos de páscoa e atendimentos em festas, quando leva o “brigabar” e o “brigacone”, produzindo em tempo real durante os eventos.

Suporte

Empreender, principalmente nos dias de hoje, pode demandar conhecimentos profundos e diversos. Não é só sobre chegar e produzir. Por exemplo, além de lidar com a divulgação de seus serviços, que hoje acontece muito de maneira estratégica nas redes sociais online, as empreendedoras têm que saber como mexer as pecinhas do financeiro e driblar os desafios que podem ocorrer.

O Fundo Agbara é um exemplo para o nosso país, já que é o primeiro fundo filantrópico para mulheres negras no Brasil. Aline Odara, idealizadora e diretora executiva do projeto, disse que a ideia teve início quando ela pode ter uma noção de como era ter segurança para pagar as contas dos próximos meses e quis fazer isso por outras mulheres.

“A gente fundou a Agbara em primeiro de setembro de 2020, em meio a pandemia do novo coronavírus. Uma pandemia em que as mulheres negras foram as mais impactadas. Em cinco dias, a gente já tinha 60 doadores recorrentes. E aí, rapidamente, o Agbara cresce, a gente passa a atender iniciativas de mulheres com aportes financeiros, capacitação técnica, assessoria e mentorias. De lá para cá, já prestamos 1.300 atendimentos”, conta Aline Odara.

Encontro realizado pelo Fundo Agbara. Foto: Aline Odara

O Fundo Agbara, atualmente, tem cerca de 250 doadores individuais e, segundo a idealizadora, há indícios de que seja o maior ciclo de doadores formalizados do Brasil. Assim, com essa arrecadação, tem sido possível contemplar, no mínimo, quatro iniciativas por mês. “São mulheres que precisam de ajuda para melhorar algum aspecto do seu negócio, adquirir algum insumo, algum equipamento”, pontua.

Mas a ajuda não é só financeira. Mulheres empreendedoras podem também procurar o Fundo Agbara para aprimorar seus conhecimentos. “A gente tem que pensar em capacitar essa mulher de maneira técnica. Pensar que nós, a população negra, ainda somos a que menos tem acesso a estudos. Então, é pensar em capacitar essa mulher para os negócios”, conta a idealizadora do projeto.

Para quem quer contribuir para a realização desse trabalho, o Fundo Agbara está sempre aberto a novos doadores. Assim será possível contemplar mais mulheres. Entre no Instagram @fundoagbara e fique por dentro de como tudo acontece.

Mulher negra no empreendedorismo

O crescimento da De Benguelas é visivelmente incrível, mas como mulher negra, Thaís Ramos ainda vivencia momentos excludentes. “Você começa sendo desacreditado. A impressão que eu tenho é que eu tenho sempre que conquistar os espaços”, afirma.

Thaís também conta sobre um infortúnio recorrente. Quando vai a uma reunião acompanhada de seu sócio, um homem branco, não costumam olhar para ela, embora possua a maioria dos dados.

Lidar com esses olhares diferentes e, mesmo assim, se manter firme, pode ser difícil, mas ter apoio e companhia de pessoas que entendem suas experiências pode trazer um alívio maior para essa caminhada. Ao entender isso, Aline Odara mostra que o jeito como o Agbara fala sobre empreendedorismo com mulheres negras é diferenciado, buscando por um olhar equilibrado e que não o romantize. “A gente sabe que, muitas vezes, o empreendedorismo é usado para responsabilizar essas mulheres, por uma questão de falta de políticas públicas de empregabilidade. O que falta são oportunidades de emprego, e o que é vendido para essas pessoas é: só lute que você vai conquistar o seu espaço. E não é isso, a gente sabe que não é por falta de esforço que as mulheres negras não estão conquistando seus espaços”, lamenta.

Quando questionada sobre os principais problemas expostos pelas mulheres negras que chegam até o Fundo Agbara, a idealizadora do projeto conta que a falta de capital de giro e de acesso ao crédito são as primeiras, mas a falta de capacitação para lidar com áreas como organização financeira e marketing digital também são pontos fortes. Outra questão é que, normalmente, as empreendedoras fazem tudo de forma solitária e sentem falta de uma rede para trocarem experiências, então o Agbara vem criando isso também.

Kelcinara, a empreendedora por trás da Kel Trufas, fala sobre sua realidade quanto a isso. “Há uma dificuldade, há esse preconceito, mas hoje nenhum desses preconceitos, sobre ser negra, ser mulher, ser gorda, ter cabelo crespo, nenhum desses adjetivos ou substantivos, nenhum deles me impede de sair do meu ateliê e trabalhar, porque hoje eu sei quem eu sou, eu sei quem é essa mulher que está aqui dentro de mim, eu sei quem é essa mulher negra que carrega tantas coisas do passado, eu entendo e vejo que eu vim para fazer a diferença”, afirma.

Kel Trufas, empreendedora de Nova Lima/MG. Foto: arquivo pessoal
Maiores conquistas

Felizmente, a vida das empreendedoras negras não se resume a dificuldades e preconceitos. Existem muitas conquistas. Para Thais, a maior conquista da De Benguelas é a geração de empregos. Ela não imaginava ser parte do sustento de tantas famílias. E outra conquista muito importante foi fazer a diferença no mercado. “Ter contribuído de uma forma muito ativa para a mudança do mercado, na forma como o mercado se comporta. Eu acho que nós conseguimos convencer muitas mulheres de que esse cabelo é maravilhoso, de que os seus cabelos são lindos”, conclui ela.

No fundo Agbara, a maior conquista foi ter criado a própria rede, com mulheres negras que se auxiliam, trocam experiências e se fortalecem. “Ainda mais em meio à pandemia, esse ambiente de isolamento social que foi necessário. Muitas mulheres trazem esse relato para a gente, do quão importante foi encontrar uma rede de pessoas que têm angústias, desafios e potências parecidas com as suas”, pondera.

Já na Kel Trufas, muitas coisas foram conquistadas por Kelcinara nesse tempo. A principal delas é o reconhecimento pelo seu trabalho. “Hoje, para qualquer um que você perguntar na minha cidade sobre trufa, graças a Deus, eles me têm como referência”, observa.

 



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