Escrevivências: A construção da identidade negra e almas que sangram

Sejamos afeto para afetar o sistema racista

Por Matheus Rocha – 8º período de Publicidade e Propaganda UniBH 

Esse texto surge da necessidade de nomear um não-sentimento, calcado numa lógica de escrita contaminada por vivências, incluindo as minhas.

A inquietação para escrita desse artigo me veio da vontade de contribuir para uma discussão pouco valorizada no âmbito da sociedade do consumo, principalmente em relação aos meios de comunicação, que reforçam alguns mecanismos de reprodução ideológica no que diz respeito à construção identitária e afetiva do homem negro.

Para combater uma realidade racista em que vive o Brasil, é preciso jogar luz sobre a dinâmica que permite a existência de tantos preconceitos baseados na ideia de uma hierarquia social. Uma forma de saber por onde começar a derrubar essa pirâmide é voltarmos nossos olhos para alguns elementos que a mantêm solidamente de pé.

A influência das mídias no comportamento social é mais forte do que muitos indivíduos gostariam de admitir. Não é preciso ser um grande estudioso para identificar as pequenas, mas significativas influências dos meios de comunicação na propagação de imagens estereotipadas, que colocam a população negra e, principalmente os homens negros, em uma situação de invisibilidade.

Quando representados por personagens, esses homens são destituídos de qualquer tipo de humanidade, o que acaba sendo uma forma de violência simbólica, a partir do momento em que a falta de representação adequada nos espaços de expressão cultural marginalizam ainda mais nossos corpos.

Os papéis mais comuns são secundários ou de figurantes, sendo eles retratados, por exemplo, como atletas, trabalhadores braçais, criminosos, favelados, escravos, o negro revoltado, o serviçal, o amigo do herói branco, o malandro, o feio, o rejeitado afetivamente ou aquele que tem o corpo hiperssexualizado e é retratado com erotismo e sensualidade, a máquina de fazer sexo.

 

Foto: Vitor Rodrigues

A TV brasileira existe desde os anos 1950, mas apesar disso, os homens negros ainda atuam em núcleos violentos, onde há criminalidade, e muito raramente ocupam um papel de destaque. Nos anos 60, início das telenovelas brasileiras, a participação de atores negros evoluiu bem pouco. Na trama A Cabana do Pai Tomás, a primeira novela que teria um protagonista negro, foi escolhido para viver o papel de escravo o ator Sergio Cardoso, um homem branco, que fez uso da técnica conhecida hoje como blackface. Por que não escolher um negro para representar um negro? Nessa época, não muito diferente de hoje, a mídia muitas vezes busca confirmar o mito da democracia racial e da convivência pacífica entre raças. Sabemos que a televisão não é um espaço de narrativa real, mas de construção real. O que significa que esse modelo de identidade e representação difunde e alimenta um imaginário de exclusão.

A lucidez que busco preservar diante de situações como essa apontam-me à necessidade de compreender que o homem negro se encontra em um lugar subalterno. Apesar de obter seu gênero favorável, a questão racial nega qualquer lugar humano dentro da sociedade, começando pela questão corporal que, quando não é sexualizada, é brutalmente atravessada pela violência, seja ela, neste caso, física, mas também psicológica, através das relações sociais construídas.

Sabemos que a masculinidade hegemônica é branca, e os homens negros têm que lidar, a todo momento, com o desafio da construção dessa masculinidade a eles imposta, ainda que esta não seja sua realidade.

Esses preterimentos sociais, dos quais os homens negros são alvo, se expandem para todas as esferas da sociedade, inclusive nas camadas afetivas. Nem tudo é óbvio e perceptível. Por isso, é necessário que nós, principalmente homens negros, tenhamos um olhar mais observador a fim de refletir sobre os significados do consumismo, onde é possível visualizar também nossa construção identitária e de relacionamentos. É preciso ter em mente que nossos desejos são construídos culturalmente e, em certa medida, essa construção parte do que consumimos, reforçando a hipótese de que buscamos com frequência pelos ideais estabelecidos pela normatividade.

Há um sentido para esses não-sentimentos aos quais nós, homens negros, estamos sujeitos, calcado nessa lógica de esvaziamento da nossa subjetividade, pensadas justamente para matar qualquer tipo de humanidade em nós. E quanto ao amor, quantos de nós, jovens negros, não nos consideramos como a razão desse não-sentimento ao menos uma vez na vida? Quantos de nós não odiamos nossos traços, nossos cabelos, narizes largos e pele negra quando nos percebemos esvaziados de nós mesmos a partir das representações dos nossos corpos na TV ou na internet? Quantos de nós ainda serão violentados simbólica e fisicamente nas relações que se constroem baseadas nessa subjetividade fortalecida pela mídia e pela cultura machista por medo de permanecermos sozinhos?

Um caminho doloroso, sem dúvida, é esse que nos leva a compreender que nossa solidão e falta de afeto, por parte do outro e de nós mesmos, é histórica e socialmente determinada.

Este texto, é sobre como nós, como sujeitos, somos formados por várias constituições que trazem à tona a incapacidade de percepções positivas sobre nossos corpos. Entretanto, ressalto que necessitamos reconhecer que somos afeto para afetar o sistema racista!

 



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