O amparo é para todos?

Apesar de políticas públicas nulas em Minas Gerais, mineiros e organizações não governamentais amparam imigrantes que recobram esperança.

Por Ludmyla Beltrão e Nilton Lopes

No ano de 2015, 193 países, membros das Nações Unidas, adotaram a Agenda 2030, uma nova política global para o desenvolvimento sustentável. Seu objetivo principal é elevar a qualidade de vida e o desenvolvimento do mundo, por isso, estão estabelecidos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com 169 metas a serem cumpridas até o ano de 2030. No entanto, conforme o Relatório Luz 2021 (disponível aqui), apresentado em julho, durante a Audiência Pública promovida pela Câmara dos Deputados (disponível no Youtube), o Brasil encontra-se com 80% de suas metas em retrocesso e/ou estagnadas.

Sem avanços, o Brasil é digno de preocupação em relação ao décimo ODS, que visa a redução das desigualdades. Esse ODS tem sido uma das principais barreiras para o cumprimento das metas desde o ano de 2020. Acoplada ao objetivo, há a meta 10.7, que se refere especificamente ao amparo seguro e responsável dos imigrantes que, com a pandemia, têm passado por grandes desafios e diversos problemas de desigualdade.

“A meta 10.7 está em maior retrocesso com a queda de 18% na contratação de imigrantes, no comparativo do primeiro semestre de 2020 com o mesmo período de 2019, e pelo fato de que o país não avançou em marcadores legais desde a aprovação da Lei de Migração de 2017. Em 2020, também diminuiu a proporção da entrada regular de população imigrante no país, já que as fronteiras terrestres permaneceram fechadas”, informa o documento.

No relatório, também consta que o Governo Federal foi acusado pela Defensoria Pública da União de abrir espaço para arbitrariedades contra a população migrante e refugiada, especialmente de origem venezuelana, incluindo a deportação em massa, a negativa de acesso a serviços de saúde e a violência policial. Uma acusação que vai de contramão ao que determina a Lei nº 13.445/2017, sobre os direitos dos migrantes no território brasileiro como, por exemplo, a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade.

POR QUE NO BRASIL?

Mas o que leva os imigrantes a se estabelecerem no Brasil? Alguns por motivos econômicos, outros por refúgio, questões ambientais, reunião familiar ou oportunidades de estudo. Imigrantes e refugiados chegam ao país com a esperança de reconstruir suas vidas em condições melhores. No entanto, muitos ainda enfrentam grandes obstáculos de desigualdade social econômica. Conforme dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP)/SisMigra, no Brasil, 17.620 migrantes foram registrados apenas em agosto de 2021. Em Minas Gerais, o número foi de 472 migrantes registrados no mesmo mês.

O especialista em Direitos Humanos e Cidadania no Contexto das Políticas Públicas, Henrique Balieiro, conta que o imigrante que desejar se estabelecer em solo mineiro poderá contar com os serviços da prefeitura, comuns à toda a população, e também com o acolhimento de abrigos e organizações da sociedade civil, como o Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR).

Os serviços sociais de apoio ao imigrante realizados por organizações não governamentais atuam, na maioria dos casos, em situações de emergência, fornecendo cestas básicas, abrigo, informações e uma direção para se estabelecer no novo país de acolhida. “Geralmente, essas pessoas chegam sem nenhuma referência, e a função dos abrigos é justamente trazer essa referência, principalmente para que elas não fiquem em situação de rua”, afirma Henrique.

Na pandemia, a situação de muitos imigrantes se tornou complicada. Isso porque muitos perderam o emprego e não tiveram acesso ao auxílio emergencial. Para Henrique, além do fechamento da fronteira, que dificultou o acesso dos imigrantes, levando muitos a optar por caminhos irregulares, não haviam muitas redes de apoio para oferecer uma ajuda mais concisa. Segundo o especialista, vários imigrantes dependeram da ajuda de organizações do terceiro setor. E em relação à dificuldade de acesso às políticas públicas, ele afirma que essa questão se deve à escassez de informações e à falta de capacitação dos agentes públicos para o atendimento dessa população.

Felizmente, a venezuelana Yenither Lisdey, de 29 anos, não compartilhou dessa realidade. Ela conta que seu companheiro, Reinaldo Nieves, de 40, migrou do estado de Aragua, na Venezuela, para Belo Horizonte, no final de 2016 e, por questões financeiras, somente em 2019, ela e o filho Dorian, de 6 anos, conseguiram se mudar para o Brasil. Um amigo do casal foi essencial para a vinda de Reinaldo ao Brasil, ele o ajudou com passagem, hospedagem e documentação para, então, poderem planejar a vinda de Yenither e do pequeno Dorian.

Reinaldo, Yenither e Dorian, família venezuelana que migrou para a capital mineira. Foto: arquivo pessoal.

Por conta da ajuda que recebeu, e do marido já instalado em Belo Horizonte, Yenither e o filho não precisaram do acolhimento de instituições sociais, mas contaram com a ajuda do Serviço Jesuíta para resolver a documentação.

“Fui para lá e encaminhei a documentação. Eles me ajudaram com isso, reservaram a data junto à Polícia Federal. Sei que eles estão ajudando muito os venezuelanos com alojamento, documentação, comida e na inserção deles no mercado de trabalho. Não sei se ainda fazem, mas quando o imigrante estava na fronteira e tinham familiares em Belo Horizonte, eles agilizavam para trazê-lo, pagavam a passagem de avião”, conta a venezuelana.

EMPREENDEDORISMO

Hoje, Yenither confirma a fala do especialista em políticas públicas, Henrique Balieiro: “Não é difícil para o imigrante empreender no Brasil, a maioria dos imigrantes vão por essa via pela questão do desemprego no país e a falta de perspectiva de achar um trabalho formal”.

Logo quando se mudou para a capital mineira, a família decidiu abrir um empreendimento de brownies, cookies e comida venezuelana. Formada em Turismo na Venezuela, ela encontrou mais lucro no ramo alimentício ainda em seu país de origem.

“Quando Reinaldo veio para cá, eu pensei em estruturar meu empreendimento, comecei a estudar certas coisas de culinária e empreendedorismo, para quando eu chegasse aqui eu ter mais coisas para fazer”, conta Yenither.

Após diversos testes, atualmente o empreendimento do casal, chamado Dorian Cacao Venezuela, totaliza onze produtos para serem comercializados, entre doces, salgados e até a farinha típica venezuelana, chamada Pana. Yenither conta que, de tempos em tempos, a família tem contato com o Serviço Jesuíta e tem acompanhado alguns de seus programas de assistência, inclusive, ganhou da organização uma máquina que precisavam em seu negócio.

Empreendimento de comida venezuelana leva o nome do filho do casal. Foto: arquivo pessoal.

DESIGUALDADE E EXCLUSÃO SOCIAL

Apesar das conquistas do empreendimento e da estabilidade no novo lar, nem sempre as experiências no Brasil foram tão boas para a família de Yenither. Ela e o filho afirmam não terem sofrido nenhum tipo de discriminação, mas a venezuelana relembra que, no começo, quando seu marido migrou para Belo Horizonte e conseguiu um emprego, ele percebeu que estava sendo vítima de desigualdade no trabalho.

“Para um brasileiro que estava fazendo o mesmo trabalho que ele, pagavam um valor e, para ele, queriam pagar um valor inferior. Depois que ele mudou de trabalho, começou a trabalhar na Uber e realizar serviços por conta própria, aí essa questão mudou. Eu vejo que isso acontece muito, a questão dos valores pagos. Tem muito trabalhador que faz um serviço e para o brasileiro tem um valor maior, enquanto para o venezuelano tem um valor menor”, declara a empreendedora.

A exclusão social tem sido a realidade de muitos trabalhadores imigrantes no Brasil, bem como a dificuldade do exercício dos direitos sociais. Para o especialista Henrique Balieiro, também ocorre muito a discriminação por parte dos próprios funcionários das empresas que, por presenciarem o empenho do trabalhador imigrante frente a escassez de trabalho e sua única fonte de renda, acabam enxergando-o como um concorrente.

“Muitas empresas ainda não valorizam essa multiculturalidade, que é positiva, e sobretudo a discriminação acontece entre os próprios funcionários com o imigrante. Às vezes, a empresa faz o processo de inserção laboral deles, porém, não tem um acompanhamento e existe essa discriminação entre os próprios colegas”, diz o especialista.

De acordo com o relatório sobre a inserção dos imigrantes no mercado de trabalho brasileiro, apresentado pelo Ministério da Justiça, em 2018, os imigrantes brancos representavam 16,8% dos cargos de direção e gerência, enquanto os de cor preta eram 0,4%. Este relatório afirma que a maioria dos imigrantes negros trabalham em áreas de produção, bens e serviços industriais, que exigem menos qualificação. Além da discriminação no alcance das oportunidades, o problema da mão de obra menos qualificada também é consequência da dificuldade da revalidação de diplomas no Brasil, então muitos imigrantes não conseguem atuar na área em que se profissionalizaram, aponta o especialista, Henrique Balieiro.

ESPERANÇA

Apesar dos momentos difíceis, Yenither enxerga a migração de sua família como uma transição tranquila e esperançosa. Segundo ela, o maior desafio que teve que lidar ao morar e empreender em outro país foi a saudade dos familiares da Venezuela e o idioma. Para Yenither, ter uma empresa implica em conversar com o cliente, ler informações e conhecer o caminho para o crescimento do empreendimento e, por isso, é muito importante dominar a língua local, o que ela conseguiu somente depois de um ano e meio.

“O Brasil dá muita facilidade para o empreendedor, pelo menos em relação ao MEI [Microempreendedor Individual], no meu país não tem essa figura jurídica, você sequer entra no mercado com sua empresa. Lá é necessário fazer um registro mercantil e, para obtê-lo, precisa de muito dinheiro, de um advogado, um contador e muito mais coisas do que aqui. No Brasil, a gente entra em um aplicativo, faz a solicitação e pronto. Já está apto para trabalhar. Aqui é fácil ter acesso a uma maquininha de cartão, na Venezuela não precisa somente do registro mercantil, tem que pagar mais um bom dinheiro”, compara Yenither.

A experiência de cada imigrante é única, Yenither e sua família tiveram a sorte de poder contar com o amparo de amigos e, segundo a venezuelana, de um povo acolhedor e interessado em ajudar. Mas nem todos aqueles que migram de seus países de origem compartilham dessa realidade ou sequer são assistidos por uma organização social. Apesar de ter migrado em uma época em que o Brasil não está em seu melhor momento, Yenither afirma que, para o imigrante que vem de situações muito difíceis economicamente e emocionalmente, o Brasil é a maior tranquilidade que as pessoas podem ter. O acesso à comida, serviços públicos e a possibilidade de ter a esperança de atingir suas metas e de saber que é possível realizar sonhos é, para ela, a maior vitória, poder ter o direito de sonhar.

“A maioria dos jovens recém-formados na Venezuela estão procurando um país onde possam viver porque não há tranquilidade. No Brasil, tem muitos recursos para viver e conquistar. O brasileiro não pode esquecer as coisas que tem pelas coisas não tão boas que estão acontecendo”, afirma a empreendedora. Comparando à crise socioeconômica, política, humanitária e migratória que se passa na Venezuela, Yenither conta ter encontrado a tranquilidade no Brasil.

“Quando eu cheguei aqui percebi que eu vivia estressada na Venezuela. Um mês depois que consegui entender que minha vida normal na Venezuela era só estresse e, aqui, o brasileiro não tem tanto isso. Pode estudar, desfrutar da sua família, ter uma vida. E quando você vem de um país em que é muita coisa que você tem que conseguir para viver no dia a dia, você já sente a diferença, a tranquilidade. Vimos, neste pouco tempo que estamos aqui, que muitas coisas no Brasil mudaram, os preços aumentaram e muitos falam ‘o Brasil vai virar Venezuela’, mas não, vocês não estão nem na ponta do caminho, acho que não vai ser assim para vocês e nem para nenhum país da América Latina”, finaliza Yenither.

OUTRAS REALIDADES

Apesar do feliz relato de Yenither, nem todos os imigrantes possuem experiências tranquilas ao chegar em solo brasileiro. O venezuelano Javier Castillo, de 39 anos, natural da cidade de Valência, no estado de Carabobo, migrou com a esposa Arianny Moralles, de 40, e os filhos Fran e Ranny, de 16 anos, para Belo Horizonte, há cerca de dois anos. Ele conta que passou por situações muito difíceis no período em que chegou ao Brasil, mas ainda assim teve sorte de receber ajuda. A família não foi amparada por nenhum projeto social, vieram auxiliados pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, que os ajudaram a passar pelos maiores desafios.

“Quando estávamos cruzando a fronteira da Venezuela para o Brasil, fomos roubados. Furtaram nossas malas com todos os pertences pessoais e depois tivemos complicações para seguir todos os processos sem dinheiro. Tivemos muitas dificuldades, mas a igreja nos apoiou. Chegamos sem dinheiro nenhum, sem muita roupa e sem lugar para morar”, conta Javier.

A maior motivação para a vinda da família venezuelana ao Brasil foi o problema de saúde de Fran. O garoto sofria de um grave problema respiratório e precisava de uma cirurgia que, segundo Javier, era impossível de ser realizada na Venezuela. Fran já passou pela cirurgia e passa bem. Agora, Javier, que trabalha como professor de dança latina, sonha com uma condição financeira melhor.

“Nossa vida mudou, estamos melhor que quando estávamos na Venezuela. Mas estamos nos esforçando muito para ter nossas próprias coisas aqui, nossa casa própria. Embora as coisas fossem diferentes no meu país, nós tínhamos nossa casa lá, aqui não, estamos em uma casa alugada e é muito ruim, já que o custo do aluguel é muito caro para a entrada de dinheiro que tenho no trabalho. Estamos procurando crescer e aprender muitas coisas no Brasil para não ficarmos dependentes só de um trabalho e uma casa alugada”, afirma o venezuelano.

No dia 28 de setembro, um grupo com 74 indígenas venezuelanos, da etnia Warao, chegou em Belo Horizonte. Os refugiados foram colocados no Abrigo São Paulo, no bairro Primeiro de Maio, Região Norte da capital, destinado ao acolhimento de pessoas em situação de rua. Conforme nota da prefeitura da cidade, a decisão do abrigo foi tomada para garantir o acolhimento do grupo em um espaço temporário, mas que garantisse questões essenciais como segurança, acesso a itens de higiene e permanência de todo o grupo em um único espaço. No entanto, segundo relatório da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, os indígenas venezuelanos encontram–se “amontoados em local insalubre, separados por uma tela de proteção dos demais abrigados”. Alguns refugiados testaram positivo para Covid-19 e um bebê de 1 ano e 7 meses veio a óbito, vítima do novo coronavírus.

Abrigo São Paulo, onde imigrantes indígenas são mantidos em condições insalubres. Foto: DPMG/Divulgação.

A Defensoria Pública afirmou que os direitos dessa população estão sendo violados no abrigo, “abrigados em local irregular, sem estrutura adequada para abrigar famílias e principalmente para povos tradicionais”, e afirmou ser um desrespeito à legislação, tendo em vista a falta de política pública municipal de acolhimento de migrantes. O prazo para a Prefeitura de Belo Horizonte apresentar um plano de remanejamento dos refugiados terminou no dia 12 de novembro. Em contato com a Assessoria de Comunicação da Prefeitura, tivemos acesso ao plano de ação:

“O grupo segue acolhido provisoriamente no Abrigo São Paulo, com todo o acompanhamento necessário, até que as adequações no novo espaço sejam concluídas. Além da continuidade das ações de acompanhamento das equipes de assistência social e de saúde, como vimos informando nos últimos dias, a Prefeitura tem construído metodologias de trabalho no acolhimento e atendimento aos grupos, que apresentam especificidades sociais e culturais.

Próximas ações do município:

• Ampliação do número de vagas em Abrigo de Famílias, possibilitando a execução de serviço especializado de Acolhimento, Acompanhamento e Integração para a população migrante e refugiada indígena;

• Repasse de R$1.641.789,29 para a execução de serviço, em parceria com o Serviço Jesuíta;

• Adequação de novo espaço físico com condições de privacidade e acolhida ao grupo.”

Segundo a prefeitura, uma estrutura, na região do Barreiro, está passando por adequações físicas para o acolhimento adequado do grupo. Tentamos contato com o Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados de Belo Horizonte, mas nos disseram que não estavam dispostos a dar entrevistas devido a agendas externas.

São diversas as realidades de pessoas que decidem migrar para o Brasil em busca de uma nova vida. Há aqueles que possuem a sorte de encontrar quem se disponibilize a acolher, diminuindo as dificuldades ao longo do caminho, aqueles que passam por golpes, não têm onde dormir ou comer, até encontrarem alguém disposto a ajudar, e também há aqueles que têm seus direitos violados e são deixados em situações que jamais alguém gostaria de estar.

Seja através de situações leves e progressivas como a da Yenither, dificultosas e perseverantes como a do Javier, ou em condições como a dos 74 indígenas venezuelanos, é perceptível que eles nunca perdem a esperança. Isso porque, apesar das dificuldades no Brasil, eles vêm de situações financeiras e emocionalmente difíceis no país de origem e acabam enxergando possibilidade de crescimento no território brasileiro. De todo modo, a partir de todos os relatos, é evidente que há igrejas, pessoas e organizações não governamentais abertos a oferecer ajuda, mas não se pode esquecer que há uma grande deficiência no sistema público, principalmente nas políticas públicas do município. Não é dever de pessoas comuns amparar o imigrante e o refugiado e sim do município, no entanto, a realidade tem sido outra.

ONDE PROCURAR AJUDA

O imigrante que precisar de ajuda pode solicitá-la no Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados, localizado na Avenida Amazonas, 641 – Oitavo Andar – Centro, em Belo Horizonte. Os horários de atendimento funcionam de segunda à sexta-feira, das 10h às 16h. Telefone: (31) 3212-4577.

Também podem buscar atendimento no Serviço de Atenção ao Migrante da Prefeitura, no BH Resolve, situado na Avenida Santos Dumont, 363 – Centro, de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h.

 



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