Por: Lucas Wilker
Como se a pandemia não fosse o suficiente, outros eventos trágicos afetaram inúmeras pessoas e tomaram conta do noticiário em 2020.É o caso do assassinato de George Floyd, homem negro vítima de racismo e violência policial em Minneapolis, nos Estados Unidos. O fato, repercutido de maneira efervescente na mídia e nas redes sociais foi o décimo assunto mais pesquisado no Google esse ano e também sustentou uma onda de protestos pelo “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam).
Não obstante, às vésperas da Consciência Negra, algo semelhante acontece no Brasil, quando João Alberto, homem negro de 40 anos, foi assassinado por guardas do Carrefour, em Porto Alegre. Os efeitos desse episódio fizeram com que o Brasil inteiro estivesse a postos para uma série de manifestações, com intuito chacoalhar a estrutura racista que ainda perdura no território nacional.
As repercussões causadas por tais eventos vão ao encontro de uma discussão importante, marcada pelo dia 10 de dezembro, em que se comemora o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Se a mídia foi uma aliada nesses processos ou não, cabe questionar se o Jornalismo, de fato, é um ente comprometido com os direitos e os seres humanos.
Para estabelecer um diálogo profícuo no que se refere ao tema, entrevistamos a jornalista e doutora em linguística, interessada em temas como crítica à mídia, direitos humanos e movimentos sociais, Adélia Fernandes. Confira:
1 – Eventos recentes, como o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, e de João Alberto, no Brasil, ambos vítimas de racismo, ascendem um debate importante acerta de um preconceito estrutural que perdura nas sociedades. Nesta mesma perspectiva, há um debate importante sobre jornalismo no tocante a essas tragédias. Qual é a principal função do jornalismo no que diz respeito a esses acontecimentos recentes?
R: A função principal do jornalismo é justamente essa: de tornar o movimento contra o racismo uma pauta e evidenciar tais acontecimentos. Os eventos racistas não são recentes, o que é recente são as coberturas que o jornalismo tem feito do movimento negro. A maneira como o jornalismo vem dando cobertura a esses novos acontecimentos transforma o que já era comum em extraordinário. O jornalismo dá luz, faz boas manchetes, repete várias vezes nos jornais. Quem acordou o jornalismo para esses acontecimentos trágicos e para o racismo foi o próprio movimento negro, porque antes não havia uma agenda e nenhuma sensibilidade em pautar racismo no Brasil.
Os movimentos que lutam por igualdade e a favor das minorias estão exigindo que o jornalismo faça a cobertura desses eventos cotidianos que atingem as minorias, especialmente da tragédia que é o racismo no Brasil, incluindo a quantidade de mortes advindas da estrutura racial que o Brasil tem.
Os assassinatos de negros no Brasil iam apenas para o caderno de polícia, mas agora estão saindo do caderno de polícia e indo para as editorias de política, de cotidiano. Há um debate sobre o direito à vida que negros têm. Isso agora não é mais um caso de polícia, é caso de políticas públicas. Há um entendimento, agora, para o jornalismo, de que esse tema deve ser tratado na primeira página.
2 – Qual seria um bom tipo de cobertura?
R: É muito subjetivo. A boa cobertura jornalística é aquela que atende às necessidades de discussão com a sociedade na sua atualidade A boa cobertura jornalística é aquela que, por exemplo, a cada morte de um negro, traz para discussão política, traz para discussão a nossa cultura racista, e não coloca apenas como evento policial. Tem que trazer à tona esses acontecimentos trágicos, retirar do caderno de polícia e ampliar esse debate: até quando o Brasil vai escamotear o grande debate necessário sobre a morte de negros no nosso país?
3 – No Capítulo II do código de ética jornalístico, que versa sobre a conduta profissional do jornalista, há menções que dizem respeito ao dever desses profissionais serem comprometidos com a Declaração Universal de Direitos Humanos. Por que essa ação é importante?
R: A profissão de jornalista está vinculada embaixo do guarda-chuva da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) que, por sua vez, também está na Organização das Nações Unidas (ONU), então a profissão está protegida e orientada pelas resoluções da ONU. Logo, é uma profissão ligada, diretamente, aos direitos humanos. A ONU classifica o jornalismo como aquela área que deve estar atenta à cobertura de fatos que ferem direitos humanos. A nossa profissão nasce já vinculada à defesa e à marcação de território do discurso dos direitos humanos.
Para ilustrar: na década de 70 foi realizada uma greve em Belo Horizonte, de trabalhadores civis, que foi configurada no caderno de polícia. A greve foi coberta pelos jornalistas policiais. Para você ver como são os movimentos sindicais: o movimento dos trabalhadores que conseguiu retirar a greve da editoria de polícia e levou para parte de política e/ou economia.
Se você pegar jornais de 30 anos atrás, a cobertura que o jornalismo fazia de crianças que moravam na rua era tratando essas crianças como bandidas. Hoje a cobertura é: o que essas crianças estão fazendo na rua? Cadê o conselho tutelar? O abrigo? O Ministério Público? Cadê as ações pela infância e pela juventude? Então a medida que a sociedade vai avançando, o jornalismo também avança.
4 – Quais eventos da história do jornalismo ressaltam a importância de a profissão seguir à risca o comprometimento com direitos humanos?
R: Muitos eventos, oriundos da organização social, fizeram com que o jornalismo mudasse a sua cobertura e se pautasse mais pelos direitos humanos. Não há um evento único, mas muitos. Mas de fato, só começamos a discutir direitos humanos, no mundo, não só no Brasil, e a perceber a importância de fazer uma cobertura mais próxima dos direitos humanos, depois da segunda guerra mundial, com a fundação da ONU. No Brasil, nós temos um problema porque vivemos uma ditadura que proibia a livre função do jornalismo e afastava qualquer discussão sobre direitos humanos, já que a ditadura não obedecia às resoluções de direitos humanos da ONU. Então o jornalismo ficou 20 anos mal-acostumado, digamos assim, em pautar os direitos humanos.
Foi só depois do fim da ditatura e depois da nossa Constituição de 1988 que o jornalismo começou a rediscutir o que tinha sido parado em 1964. Em 1988, voltamos, pouco a pouco, a incorporar os conceitos de direitos humanos na maneira de cobrir os eventos. Se o mundo inteiro já estava discutindo coberturas na perspectiva de direitos humanos a partir de 1948, o Brasil ficou com um hiato de 23 anos sem poder fazer essa discussão. Agora estamos bastante atrasados no modo de fazer jornalismo e colocar os direitos humanos em seu centro, a ponto de cair nessa discussão de que os direitos humanos não são importantes.
Os movimentos sociais, contra o racismo, os movimentos das mulheres, contra o machismo, contra o feminicídio, o movimento LGBTQ, contra a LGBTQfobia, são o que têm acordado, nós jornalistas, para o lugar que os direitos humanos devem ocupar, no jornalismo, em todas as pautas.
5 – Como você avalia o modo de cobertura jornalística pautado pelos direitos humanos na atualidade?
R: Minha avaliação é que o jornalismo tem crescido. Tem encontrado mais abertura para falar de direitos humanos, e se aproximar de tais questões quando vai abordar temas que precisam dessa perspectiva do direito. Sistematicamente, jornalistas têm procurado o bom jornalismo. Não apenas o que procura boa audiência, mas o que interpreta os acontecimentos à luz dos direitos humanos.
Aos poucos, à medida em que a sociedade vai incorporando também esse conceito de cidadania e de direitos humanos, o jornalismo vai se apropriando e fazendo o melhor uso dessa ferramenta. Não é de uma noite para o dia. O jornalismo precisa ser provocado pela sociedade a dar essas respostas mais vinculadas aos direitos humanos. O jornalismo, atualmente, não está 100% ligado aos direitos humanos, mas já foi muito pior. Então a gente percebe sim um avanço no Jornalismo no que se refere às coberturas à luz dos direitos humanos.