A capital mineira tem diversos espaços reconhecidos na cena cultural teatral, como o Palácio das Artes, o Teatro Francisco Nunes e o Teatro Marília, além de outros auditórios de escolas privadas, onde ocorrem apresentações de diversos grupos teatrais. Mas para além deles, existem locais que estão abertos ao público e que buscam abrir portas para as manifestações culturais de qualquer tipo, saindo deste espaço já conhecido pela massa belo-horizontina.
Um destes espaços é o Teatro Espanca, localizado na rua Aarão Reis, no Centro de Belo Horizonte. O grupo surgiu, primeiramente, com um grupo de teatro, em 2004. Um dos atuais coordenadores do espaço, Alexandre de Sena, contou um pouco da história do grupo e deste espaço que, hoje, é usado para apresentações de teatro e outras manifestações culturais.
“O grupo surge em 2004, com a realização de uma cena curta chamada Por Elise, no Festival de Cenas Curtas, no Galpão Cine Horto, Região Leste de Belo Horizonte. Era uma cena de 15 minutos e que teve muito sucesso em sua apresentação. Então, as pessoas envolvidas na apresentação decidiram montar um grupo devido a esse êxito. Assim, esse grupo montou um espetáculo chamado Por Elise, que viajou o país realizando apresentações”.
Durante a montagem do espetáculo, Alexandre conta que foi o momento em que se pensou o nome do grupo. No enredo do espetáculo, tinha uma senhora que morava em uma região periférica e, em sua casa, havia um quintal com um pé de abacate grande. Os abacates caíam dessa árvore e acabavam acertando a cabeça de algumas pessoas. A senhora, então, espalhava colchões para amortecer a queda dos abacates e dizia que existiam coisas na vida que espancam, mas que espancam doce.
“A peça espancava de uma forma muito doce, até pela dicotomia do que temos pela visualização de espancamento e do que é doce. Então o grupo passou a se chamar Espanca. A partir desse momento, o grupo passou a estudar mais sobre poética da violência e o que é violento e, ao mesmo tempo, tão poético, que nos mobiliza a ter pensamentos em cursos de mudança”.
O Grupo Espanca, após esta peça, passou a montar outros espetáculos que traduziam essa perspectiva da violência da poesia. Com estas outras peças, o grupo sentiu a necessidade de ter um lugar para ensaiar, sendo este o momento em que nasceu o Teatro Espanca.
Na época em que o espaço começou a funcionar nesse local, por volta de 2010, a rua era bastante movimentada e havia uma efervescência cultural jovem muito grande, segundo o coordenador. O Teatro Espanca foi um ponto com relação à rua e à cultura do Baixo Centro de Belo Horizonte, e com a cultura que ali acontecia, como as ocupações, forma como eram chamados os eventos que aconteciam debaixo do Viaduto Santa Tereza.
O Espanca, além de um espaço cultural, participava de um cenário também político e movimentado que manteve o espaço vivo. O espaço sempre acompanhou o cenário cultural do Baixo Centro, onde ocorria uma movimentação multilinguagem, com manifestações artísticas que envolviam desde os MC’s de batalhas de rap a eventos e mostras de rua.
Em 2018, o grupo de teatro se afastou e entrou em uma pausa, mantendo ativo o espaço teatral. Este espaço começou a tentar abarcar as pessoas negras da cidade, fazedores(as) de cultura, que Alexandre considera que, “devido à realidade do país, são em sua maioria marginalizadas”.
“É um espaço que fomos pensando e, agora, cada vez mais, tentando construir junto com as pessoas que frequentam, tentando tirar, inclusive, um pouco da ideia de propriedade. Queremos tirar a ideia de que alguém representa o espaço, porque entendemos que é necessário que várias pessoas se sintam confortáveis e pertencentes àquele espaço”, afirma o Alexandre.
O Teatro Espanca é um lugar que pode ser utilizado para o ensaio de outros grupos de teatro mediante conversas e trocas, sejam financeiras ou não. Por ser um espaço independente, o coordenador explica que isso é necessário para que as contas possam ser pagas. Na pandemia, a receita paralisou devido ao fechamento do espaço. Alexandre de Sena informa que, mesmo fechados presencialmente, ainda existiam atividades online, como lives de apresentações de músicas e palestras.
“No começo da pandemia fizemos algumas lives de aprendizagem, pois estávamos começando a aprender. Depois, com a Lei Aldir Blanc, recebemos uma verba e, assim, achamos justo convidar algumas pessoas que tinham e têm a ver com o que o espaço quer para a cidade, que é priorizar manifestações artísticas pretas. Assim, contratamos algumas pessoas para apresentar lives”, conta.
O coordenador do Espanca relata que as lives realizadas no espaço chegaram a atingir um público de milhares de pessoas, mantendo assim o número do público presencial e tendo um alcance de números e localidades muito maiores no território da internet, e afirma, ainda, que investir no híbrido pode ser uma opção.
“Talvez não vamos fazer lives na mesma frequência porque agora o público pode ir ao teatro, e nele se faz a presença, e a sociedade está carente de presença, carinho, afeto e abraço. Mas, no ambiente virtual, também existe carinho, apesar de não ter abraço. Então, iremos medir o que é bom fazer presencialmente e o que não é, o que desejamos receber e o que será feito melhor online para atingir um público maior. Realizar atividades híbridas é algo que parece ser uma tendência, porque por mais que a internet exista desde os anos 90 no Brasil, eu acho que a cultura da linguagem teatral e das coisas que acontecem dentro de um teatro nunca ocuparam o território virtual com tanta intensidade, e abrir mão desse local conquistado também pode ser um equívoco”, finaliza Alexandre de Sena, coordenador do Teatro Espanca.
Cadê os artistas?
As artes cênicas são produções performáticas realizadas em locais determinados e onde exista um público. Essa linguagem é uma das presentes no teatro, que conta também com a dança, música, interpretação e literatura.Os coletivos de teatro são importantes para o cenário cultural da capital mineira na medida em que é por meio deles que essa manifestação artística pode ser transmitida e realizada com tamanha riqueza social, política e cultural.
Em Belo Horizonte, existem muitos grupos teatrais com propostas performáticas, objetivos e valores diferentes. Muitos deles não são grupos muito conhecidos pela população, mas realizam trabalhos importantes, que promovem o pensamento crítico e instigam a busca por novos conhecimentos e experiências.
O Grupo Encruzilhada, que surgiu em 2019, faz parte dessa cena teatral da cidade. O coletivo surgiu com os membros Ronaldo Marques – músico, Marcos Matheus – músico percussionista, compositor e ator, Rodrigo Correa – dramaturgo e ator e Chica Reis – atriz, contadora de histórias, professora de teatro e pesquisadora de teatro e tradição afro-brasileira.
“Eu e Marcos Matheus desenvolvemos um trabalho que se chamava Encruzilhada de Mulheres, uma contação de histórias sobre mulheres negras. Começamos a trabalhar juntos e conheci o Rodrigo, que estudava com o Marcos e o Ronaldo, um amigo em comum, começamos então a nos aproximar a partir desse espetáculo. Passamos a frequentar teatros e shows de músicas juntos. Depois das apresentações, conversamos sobre o que víamos e o que tínhamos vontade de fazer. Um dia surgiu a ideia de coletivar, já que tínhamos desejos e ideias em comum e vontade de criar”, conta Chica Reis.
A partir de então, o coletivo começou a pensar sobre as ideias e sobre o corpo do grupo e o nome, o Coletivo Encruzilhar. Esse nome vem do espetáculo Encruzilhada de Mulheres, mas o encruzilhar também é pensado a partir da ideia de encruzilhada, que Chica Reis explica ser um lugar de potência, realização, escolhas, criação, e é o território de Exu, o “senhor da encruzilhada” das ruas e que conecta a terra ao céu. “É um lugar muito importante para a gente, pois acreditamos que foi em uma dessas encruzilhadas que nossos caminhos se cruzaram e que surgiu o coletivo”.
O grupo trouxe a história Encruzilhada de Mulheres como seu primeiro espetáculo, a peça narra a história de 5 mulheres negras que, em determinado momento da vida, têm que fazer escolhas que muitas vezes as mulheres negras precisam que fazer. O espetáculo fala sobre isso, sobre as mulheres potências que sofrem tanto a violência doméstica quanto uma violência epistemológica, de se perder quem é, nessa negritude trazida. O grupo apresenta, após esse espetáculo, uma dramaturgia do Digo Correa, Ao Telefone, que também traz mulheres negras, cis, trans e homossexuais, e a relação delas no amor.
Além de espetáculos teatrais, o Coletivo Encruzilhar também produziu o PreTV, uma série audiovisual, que se passa em uma TV, em que os protagonistas são negros. O grupo traz questões para pensar homens e mulheres negros na televisão e de que forma isso vem se apresentando na sociedade. O grupo também está no processo de pesquisa para produção de outro espetáculo.
O teatro também possui este lugar de educar, não só com as peças, mas também com os projetos realizados com o público. O Coletivo Encruzilhar criou o Grupo de Estudos em Dramaturgias Negras, em que o objetivo é trazer autores e autoras de peças teatrais negros, avivando essa memória, esses textos e esses questionamentos. Esse grupo resultou em três curtas produzidos pelos participantes no final do estudo, além da produção de um artigo para a revista RevuloZine.
Com a pandemia, Chica Reis conta que o trabalho de grupo foi intensificado, por mais que estivesse difícil. “Nós tivemos um desejo de estar juntos nesse momento pandêmico, nós entendemos desde sempre que parar não era uma alternativa. No início, online, foi muito difícil conseguir, toda semana, produzir, encontrar, falar, ler textos. A pandemia deu um novo direcionamento para as formas como já trabalhávamos. Ficou muito claro que se nós não produzíssemos, nós não resistiríamos. Produzir na pandemia era resistir, não só à pandemia, mas também ao sucateamento da política do país”, afirma Chica.
O Coletivo se apresentou online e conta que ocorreram debates com o público após as apresentações. “Apresentar diretamente para o público, mesmo que você faça uma temporada, cada dia é um dia diferente, porque você não é o mesmo e as pessoas não são as mesmas, cada uma está vindo de algum lugar, do trabalho, de casa, de algum acontecimento diário da sua vida e você também está vindo de algum lugar com alguma percepção daquele dia. A gente sente isso, existe uma troca com o público que é para além do ensaiado, que só é possível nesse momento entre ator e plateia, na troca de olhares, na troca deste calor humano. No online, eu confesso que as primeiras tentativas foram meio desconfortáveis”, fala Chica.
Chica Reis também relata que, quando se vem de uma experiência de teatro, de um fazer teatral, o corpo acorda para aquilo mesmo que seja online. É como se houvesse uma virada de chave e o ator soubesse que do outro lado existem pessoas, como uma plateia invisível que não está com os atores, mas está em espaços diferentes, vivenciando a apresentação no mesmo tempo que eles. Então, existe uma conexão no momento da ação teatral.
“Dos espetáculos que nós fizemos online, a ação do público, a resposta, os comentários e a procura em nossas redes sociais mostraram que, apesar de diferente, o teatro resistiu aos tempos de pandemia”, finaliza Chica Reis. O teatro está presente em nossa sociedade há milênios e integra parte de nossa cultura. Apresentando diferentes formas de manifestação, o teatro vem tecendo relações importantes no panorama sociocultural belo-horizontino, com papel importante na produção de cultura e conhecimento.