A representação de corpos negros na televisão e no cinema é rara, e quando ocorre segue estereótipos pouco representativos, dada a diversidade do país.
Por Iris Aguiar, aluna do 1º período de Jornalismo do UniBH
Quando criança é comum assistir desenhos, filmes infantis, se espelhar e fingir ser os personagens. Mas eu tinha um problema. Sou uma mulher negra e cresci assistindo filmes infantis, a maioria da Disney, produtora dos maiores clássicos para crianças da atualidade. Entretanto, o que eu via sempre eram as princesas brancas e com traços que não condizem com os meus. Eu não me sentia representada por elas. Mesmo que à época não conhecesse essa palavra ou o significado, o sentimento estava lá.
No universo Disney, só existem duas princesas negras, e uma delas foi criada recentemente, em 2016, a Moana. Essa falta de representatividade dos corpos negros no cinema cria questionamentos como o porquê eu, criança negra, não posso ser uma princesa e porque não posso me parecer com elas.
Essas são as dúvidas de outras inúmeras crianças negras, que não se veem representadas nos filmes que assistem e acabam se comparando. A representatividade é essencial para facilitar o processo de aceitação da identidade e dos traços, processo que milhares de brasileiros precisam passar. A falta dela torna esse processo mais dolorido e solitário.
Na literatura, a grande autora brasileira, Geni Guimarães, mulher negra, escreveu o conto Metamorfose, que ilustra como é difícil para uma pessoa negra entender o que sua cor significa socialmente e se aceitar.
Este conto de Geni foi muito marcante em minha trajetória. Nele, a personagem principal, uma menina negra, toma consciência da sua cor através de uma história sobre a escravidão contada por sua professora na escola. A educadora deixa de falar sobre a resistência do povo negro e cria no imaginário das crianças a imagem de um povo fraco, que se deixou dominar. A garota percebe que isso faz os outros a verem diferente, sentindo pena, e ela entra em um estado de depressão que a leva a fazer coisas para tentar mudar quem ela é, como usar tijolos moídos para raspar a sua pele até tirar toda a “sujeira”, que seria a sua cor.
A narrativa desse conto não está muito longe da realidade, na qual esse passado escravista nem sempre é mostrado em sua totalidade. O povo negro foi sim escravizado, mas lutou e resistiu. Muito. Esse papel de serventia não cabe mais a nós, e a cultura negra, mesmo com as tentativas de ser apagada ou criminalizada, como o caso da capoeira, sobreviveu a esse período.
Todas essas tentativas, lutas e resistência, se contadas através do olhar do colonizador, do escravizador, terão outro sentido e criam uma visão incompleta do que foi esse período da história que até hoje influencia as relações da sociedade.
A representação de corpos negros em espaços como a televisão e o cinema é rara. Não somos representados, e quando somos estamos em papéis estereotipados como de pouca importância social. Este é o reflexo de uma sociedade que cresceu em estruturas racistas, e que mesmo tendo evoluído, não é possível negar que o preconceito ainda existe e que muitas mudanças ainda precisam acontecer.
Representatividade no cinema brasileiro
No cinema, poucas são as personagens negras protagonistas de séries, novelas e filmes. Existem sim pessoas negras nos filmes e televisão, mas estas não representam nem metade dos elencos ou direção.
De acordo com os dados do “Informe sobre Diversidade de Gênero e Raça no cinema em 2016”, realizada pela Ancine, a participação das mulheres negras nos elencos, direção e produção dos filmes foi extremamente baixa, principalmente em contraponto com 54% dos brasileiros sendo negros ou pardos.
O infográfico abaixo mostra a representatividade de pessoas negras no cinema brasileiro, de acordo com o informe de 2016.
O Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), com sede na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), realizou um estudo do cinema brasileiro que indica que o grupo menos representado nas telas é o das mulheres negras, que estiveram, em 24 anos, apenas em 4% dos elencos, e não roteirizaram ou dirigiram nenhum longa metragem no país.
Através da Agência Nacional do Cinema (Ancine), que disponibilizou dados de bilheteria, dos anos de 1995 a 2018, o grupo Gemaa analisou os 10 filmes mais assistidos de cada ano. No total, a análise contabiliza mais de 240 filmes. O resultado obtido indicou pouca representatividade de corpos negros no cinema, que também é traduzido em pouca diversidade nos papéis interpretados pelas mulheres pretas ou pardas.
A coordenadora do estudo, Márcia Rangel Cândido, em entrevista, explica que a produção nacional, em geral, coloca negros em narrativas de criminalidade, são pobres e têm finais tristes. As mulheres negras, em sua maioria, são ilustradas em cenários familiares instáveis, espaços de violência e tragédia social. O papel mais comum é o da prostituição e da hipersexualização. Tais representações servem apenas para criar e reforçar um estereótipo da mulher negra brasileira, que não contempla toda a diversidade do país.
Outra pesquisa realizada por Márcia Rangel Cândido e João Feres Júnior, no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, através de dados do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA), confirma mais uma vez o cenário da escassa representatividade feminina negra no cinema nacional.
Esta pesquisa demonstra que, no cinema brasileiro, existe uma intensa desigualdade racial nos elencos, uma vez que 79% dos personagens foram interpretados por atrizes e atores de cor branca, enquanto as mulheres negras (2% de cor preta e 3% de cor parda) têm a menor representatividade, interpretando somente 5% do total de 1.181 personagens classificados.
Os papéis interpretados por pessoas negras reafirmam o estereótipo negativo dessa grande parcela da população que, além da pouca representatividade, não se vê em cenários sem violência, prostituição e criminalidade. O estudo aponta que apenas 7% das narrativas têm o protagonismo de mulheres negras, mas em sua maioria elas são pobres e vivem em situações de violência e prostituição.
Crescer em uma sociedade que pouco me representa, e que tem poucos espaços onde posso estar é frustrante. Apesar disso, existem narrativas no cinema que se destacam e que são esperança para um futuro em que a representatividade negra possa condizer com a diversidade que existe nesse país e no mundo.
Algumas produções, como ‘ A Princesa e o Sapo’, ‘Moana’, ‘Flash’, ‘M-8 Quando a morte socorre a vida’, ‘Na quebrada’, apesar de ainda trazerem alguns estereótipos, têm narrativas que trazem no elenco personagens protagonistas negros, que podem ser representativos para parte da sociedade brasileira.