Veneração de fã-clubes ganha novas camadas na contemporaneidade

Entre as paixões e os perigos da idolatria, comunidades se transformam e expandem o lugar de clientela, mas ainda são essenciais para longevidade midiática dos ídolos.

Por Rafael Alef, aluno de Jornalismo de UniBH

Quem nunca teve um ídolo? De atores de novela, às estrelas do futebol e da música, uma coisa é certa: a presença de fãs que os admiram. Com as evoluções tecnológicas, esses devotos seguidores estão cada vez mais próximos de seus ídolos, acompanhando o que comem, o que vestem e o que pensam pelas redes sociais digitais. Muitos se conectam por meio de comunidades do ciberespaço, para compartilhar gostos e experiências, mas essa conexão pode passar do ponto. A invasão de privacidade e a adoração sem limites são algumas das linhas que não devem ser cruzadas pelos famosos fandoms, mas que ainda estão presentes nessa relação.

Mas, afinal, o que é ser fã atualmente? Muito além do consumo de produtos licenciados, os seguidores adquirem novas habilidades e passam a produzir conteúdo a partir das personas tão veneradas. Esse processo, em prol da reafirmação do amor, se torna uma forma importante de capital e pode até virar profissão.

Paixão produtora

O estudante de Pedagogia, Mateus Las Casas, tem 24 anos e é um grande entusiasta da atriz e cantora estadunidense, Selena Gomez. Desde 2010, cultiva uma paixão por colecionar mídias físicas e, no fim do último ano, passou a investir na carreira de influenciador digital com a página no Instagram, Rare Collection. “A ideia veio de uma busca por conexões com outros colecionadores. É um espaço muito acolhedor onde trocamos indicações e compartilhamos esse amor por colecionar”, explica. O que começou como um hobby, e inicialmente estava restrito aos produtos da cantora favorita, se expandiu, demandou estudo e uma reorganização na rotina. “Aprendi muito sobre taxas de importação porque não conhecia de imediato. Também tive uma troca bacana com outros colecionadores que entendiam melhor o processo”, relata.

Em cerca de sete meses, foram 121 publicações, entre postagens no feed, stories e IGTV. Mateus produz fotos e vídeos para mostrar as particularidades da arte de cada produto, detalhes de acabamento e localidade e até fazer um ranking de faixas prediletas. Esse processo é bem recebido e traz motivação para investir no crescimento do perfil. “Os seguidores interagem bastante e querem saber como compro e cuido das mídias físicas. Em uma página como essa, é preciso manter a inovação para não perder o engajamento”, explica.

Esse perfil de prosumidor (aquele que além de consumir, passa a produzir), muito popular atualmente, foi essencial para o encontro da professora Priscila Ribeiro e do radialista e editor de vídeos, Lucas Alves. Ambos se conheceram em sessões de teatro musical e transformaram o amor de fã em trabalho, com a criação do fã clube Wicked Family e, posteriormente, o portal Mundo dos Musicais, dedicado à cobertura de produções desse gênero no Brasil e no mundo.

“Criei um fã-clube para o ator Bruno Sigrist [estrela da série musical Julie e os Fantasmas], e o segui até o teatro quando assisti à peça Rock In Rio – O Musical, em 2013. Conheci o Lucas e muitas outras pessoas que tinham fã-clubes nessa época, não fazia ideia que esse mundo [do teatro musical] existia”, recorda Priscila.

A união de adoradores resultou em homenagens para o elenco da peça, com a produção de bottons personalizados e cartões postais entregues na última sessão do espetáculo. No ano seguinte, com a chegada do musical Wicked, Priscila resolveu dar continuidade ao projeto com a criação da página Wicked Family, dedicada a todo o elenco e produção do espetáculo no Brasil. O perfil bateu a marca de 6 mil seguidores somente no Instagram.

“Comecei a pegar todas as postagens do elenco e repostar na página. Também colocava avisos de sessões populares e, com isso, migramos para grupos no WhatsApp e Facebook”, explica Priscila. Quando a peça chegou ao fim, se questionou, junto a Lucas, sobre o que viria a seguir e, já conhecidos por grande parte dos atores, se uniram para a criação do portal. “Antes, tínhamos a visão da plateia e, depois [no portal], começamos a gravar conteúdo de bastidores. Acompanhávamos o ator desde a chegada ao teatro, preparação com a maquiagem, até ele subir ao palco”, detalha Lucas.

A página, pensada como um grande fã-clube com coberturas de fã para fã, hoje, conta com uma equipe de oito pessoas e quase 45 mil seguidores combinados entre YouTube e Instagram. Os atores passaram a respeitar o grupo de fãs como um veículo de divulgação, o que aumentou a credibilidade da página e abriu portas para novos acessos nos bastidores das produções teatrais.

Essa relevância dentro do universo do teatro musical no Brasil trouxe uma perspectiva diferente. Agora, como um portal de notícias, recebiam informações privilegiadas e que não podiam compartilhar em imediato, para não prejudicar as produções. Com esse acesso e a confiança de produtores, criaram espaços ainda mais compartilhados, como o evento “Mundo dos Musicais Convida”. Em parceria com os teatros, organizaram sessões exclusivas, com direito a sorteio de brindes e encontro com o elenco. “Todo mundo subia no palco e tirava uma foto profissional com os atores. Rolava essa integração das pessoas que gostavam do musical e do elenco, mas nunca tiveram a oportunidade de conhecer e conversar um pouco”, explica Lucas.

A manutenção de todos esses processos, porém, não é fácil. Sem patrocinadores e com carreiras paralelas à vida de fã, essa comunidade contribui para a divulgação e popularidade de pessoas e produtos, mas não recebe muito em troca. O amor é a motivação mais forte, mas não cobre trajetos, ingressos e, principalmente, o tempo investido. “Para o trabalho com o blog eu separava um tempo no meu horário de descanso. No início foi tranquilo, mas tive momentos em que eu trabalhava tanto durante o dia que, nesse horário, o que eu menos queria era editar mais”, relembra Lucas.

Selena Gomez atende fãs em Toronto. Foto: George Pimentel/WireImage.
Impacto socioemocional

Aos 27 anos, a mestranda em Ciência e Tecnologia das Radiações, Fran Dutra, dedica parte de seu tempo para acompanhar fielmente as novidades do grupo de K-Pop, BTS. Há cinco anos, conheceu o trabalho da banda por indicação de uma amiga e, desde então, se apaixonou pelos integrantes e suas músicas. “Eu estava em uma fase desanimada, sem muita perspectiva com a vida e uma amiga disse: acho que se você começasse a acompanhar o trabalho deles teria uma nova fonte de alegria no seu dia a dia”, relata.

Com uma forte presença nas redes sociais, o BTS mantém uma interação constante com os fãs ao redor do mundo. Entre programas de variedade e novos trabalhos musicais, os oito integrantes cultivam essa conexão e se transformam em uma válvula de escape em meio aos dilemas da atualidade.

“Ter essa fonte de conteúdo constante é uma coisa que me ajuda a lidar com toda essa maluquice que vivemos. Sei que vai sair algo novo e me deixar feliz por acompanhar”, diz Fran.

As mensagens de amor próprio e liberdade de expressão nas músicas do grupo se tornaram aliadas da estudante, que também conheceu muitos amigos através do amor pela banda. “Eles falam muito em se amar, se aceitar e não seguir os padrões da sociedade, e isso me tranquiliza. Eles abriram a minha visão sobre entender e valorizar o que eu quero na vida e porque eu quero”, explica.

Em formação para uma carreira como pedagogo, Mateus Las Casas também se sente influenciado positivamente pelas filosofias da cantora Selena Gomez. “Sou fã dela desde os 13-14 anos, então cresci acompanhando e isso teve uma influência no meu desenvolvimento como pessoa. Ela fala muito sobre tratar o próximo com bondade e acho que apliquei isso na minha vida”, reflete.

Essas filosofias também alcançam o engajamento social dos seguidores. Em janeiro de 2021, os armys, como são chamados os fãs do grupo BTS, arrecadaram, em campanha de doação para compra de oxigênio em Manaus, norte do Brasil, cerca de 58 mil reais. A ação surgiu por influência dos posicionamentos do grupo. O BTS, que é parceiro da UNICEF desde 2017, reiterou recentemente o seu compromisso com a organização, com doação de um milhão de dólares para a campanha Love Myself, que visa o bem-estar de jovens ao redor do mundo.

Beatlemania em Forest Hills, 1964. Foto: Mirrorpix/Getty Images.
Perigos da idolatria

O engajamento de fãs e suas comunidades é uma das principais moedas de capitalização para a indústria do entretenimento. Se, no passado, a mesma era movimentada pela compra de livros, camisetas, álbuns físicos e ingressos de shows, hoje, se alimenta dos altos números de seguidores e seu engajamento. Quanto maior a presença nas redes sociais digitais e em interações com o público, maior a adoração.

Essa conexão, motivada pela identificação e projeção, é potencializada pela distância entre ambas as partes e pode ser associada aos ‘neurônios-espelho’. Descoberta pelo neurofisiologista italiano Giacomo Rizzolatti, a teoria de que o nosso cérebro repete as ações que observamos se encaixa com o impacto e absorção de mensagens propagadas de ídolo para fã.

A popularidade, no entanto, pode ser prejudicial. Muito se questiona sobre o que é calculado e o que é espontâneo, já que o fã é um comprador em potencial. Cada vez mais os nomes com maior popularidade na mídia emitem posicionamentos robóticos e que podem afetar seu apelo inicial: a originalidade. O jornalista Raphael Vidigal, experiente em trabalhos como produtor e repórter cultural para o jornal mineiro Hoje em Dia e para a Rádio Itatiaia, acredita que, no passado, os fãs se portavam menos como clientes e os artistas não tinham essa obrigação de agradar a todo tempo. “Hoje, parece haver uma tendência reversa: se o artista não atende ao que o fã deseja, é porque o artista não tem condições para tal”, explica.

Compartilhando desse pensamento, a jornalista Carolina Braga, idealizadora e editora do portal Culturadoria, destaca o sucesso de Juliette, vencedora da última edição do Big Brother Brasil, como um exemplo de adoração que pode se tornar uma prisão. “Vivemos em uma sociedade muito volátil, em que o fã pode deixar de ser fã, caso ela [Juliette] perca a autenticidade e fique mais com a cara de uma marca”, pontua.

Essa prisão em que o ídolo só pode agradar se agrava com facilidade. Recentemente, a cantora brasileira Luísa Sonza precisou deixar o país após constantes ataques nas redes sociais. A artista, que teve um relacionamento intensamente acompanhado pela mídia nacional, sofreu com comentários machistas, acusações e até ameaças de morte, feitos pelos fervorosos fãs de seu ex-marido, o comediante Whindersson Nunes.

A toxicidade na internet acaba cruzando limites e preocupa até mesmo fãs inseridos nesse contexto. “Vejo pessoas de 13 anos brigando no Twitter e me preocupo em como aquilo vai afetar as relações fora da internet”, diz Fran, sobre alguns fãs do grupo BTS.

Essa rivalidade, constante em torcidas e fã-clubes, deixa claro que não se pode fazer tudo em nome do amor por um ídolo. Grandes admirações têm diversos pontos positivos e podem levar a lugares nunca imaginados, no entanto, precisam ser conduzidas com respeito e senso de responsabilidade para não ultrapassar seus benefícios e se transformar em obsessão.



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