Projeto Tamar é referência mundial com a conservação de tartarugas marinhas na costa brasileira
Por Hérculles Barcelos e Ivan Ribeiro
A Agenda 2030 é um programa da ONU – Organização das Nações Uni-das, dividido em 17 ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável). O programa foi assinado por todos os 193 países que possuem relações com a organização, num pacto global, em 2015, na sede da ONU em Nova Ior-que, Estados Unidos. A Agenda 2030 tem como objetivo resolver, ou pelo menos amenizar, os problemas destacados por cada um dos 17 ODS.
Nesta reportagem, mais especificamente, será tratada o ODS de núme-ro quatorze, intitulada Vida Debaixo D’água, que busca meios de proteção aos ambientes aquáticos, visando garantir a conservação e o uso saudável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento. Segundo o artigo “Plastic Pollution Affects Sea Life Throughout the Oce-an” (em tradução livre: “A poluição do plástico afeta a vida marinha em todo o oceano”), publicado no Pew Research Center, portal especializado em pesquisas e tendências que “moldam o mundo”, cerca de 13 milhões de toneladas de lixo plástico são jogadas todos os anos nos oceanos, o que representa aproximadamente 80% de toda a poluição marítima e isso, com o tempo, pode acarretar no colapso da vida marinha, que já é bastante afe-tada pela poluição. De acordo outro estudo, da ONG Ocean Conservancy, com a pandemia do novo coronavírus, 94% dos voluntários recolhedores de lixo dos oceanos encontraram materiais descartáveis como máscaras e luvas. Estima-se que foram coletados quase 110 mil objetos de proteção individual, conhecidos como EPIs, somente no ano de 2020.
A bióloga Maria Luiza de Teixeira Souza explica a importância da preser-vação da vida marinha. “Ambientalmente falando, sabemos que os seres vivos, em sua maioria, são dependentes da água durante seu ciclo de vida, inclusive nós, humanos. Essa relação entrelaçada comprova a importância de assegurar a qualidade da água para manutenção de toda a biosfera. A falta dessa conservação pode ocasionar em déficit de gás oxigênio disponí-vel na atmosfera, já que as algas marinhas são responsáveis pela produção de 54% do oxigênio do mundo, segundo dados do Instituto Brasileiro de Florestas; além do desequilíbrio da cadeia alimentar, pois, com a poluição, seres fotossintetizantes, como fitoplâncton e algas pluricelulares, morrem e os animais que se alimentam deles ficam prejudicados diretamente pela falta de alimentos e baixa taxa de oxigênio dissolvido na água”.
Ainda segundo Souza, alguns animais terrestres também são atingidos, já que se alimentam de animais marinhos. Aves, ao tentarem capturar peixes em um mar em que houve um acidente de derramamento de petróleo, tam-bém sofrem, porque suas penas ficam encharcadas dessa substância, o que dificulta o voo e a manutenção da temperatura do seu corpo, além disso, a famosa fala “não vou usar canudos para salvar as tartarugas” precisa ser reformulada, já que qualquer plástico, não só canudos, pode ser confundi-do por águas-vivas e as tartarugas ou outros animais podem acabar mortos por sufocamento ao se alimentarem desse lixo. “O esgoto derramado no mar é problema também, porque serve de matéria orgânica para prolifera-ção exacerbada de algumas algas que liberam toxinas na água. Pensando ainda em outras áreas afetadas pela poluição dos ambientes marinhos, po-de-se destacar a diminuição do turismo, afetando a economia local e tam-bém pesquisas científicas”, complementa a bióloga.
É de conhecimento geral, ou pelo menos deveria ser, a importância da preservação da vida debaixo d’água. Além de ser o produto natural mais es-sencial à vida, na água ainda habitam espécies que são responsáveis pela alimentação de centenas de milhões de pessoas, fonte de renda de outros tantos, bem como objeto de pesquisa mundial. Cuidar da água e do que habita nela é cuidar de pessoas. A preservação deve ser tópico de todos os países, esse é o motivo da ONU ter introduzido esse ODS na Agenda 2030.
Para que haja um norte de como esse tipo de proteção pode ser feita, procuramos o Projeto Tamar, que atua de forma conservacionista na pro-teção de tartarugas marinhas ameaçadas de extinção, garantindo a elas probabilidades muito maiores de sobreviver. Um momento clássico e que é bastante conhecido é a caminhada das tartarugas que acabaram de nas-cer na areia dos mares espalhados pela costa brasileira até a água, onde iniciam suas vidas.
História da criação do projeto
A Fundação Projeto Tamar é uma entidade de direito privado, sem fins lu-crativos, e co-executora do PAN – Plano Nacional de Ação para a Conserva-ção das Tartarugas Marinhas no Brasil do ICMBio/MMA, sendo responsá-vel por grande parte das ações previstas. O Tamar surgiu em 1980, como nome Projeto Tartarugas Marinhas, mas começou a ser idealizado alguns anos antes, em 1977, quando um grupo de estudantes da Faculdade de Oceanografia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ao fazerem uma pesquisa exploratória em uma praia isolada do território gaú-cho, observaram que a areia estava bastante remexida e que haviam muitos rastros até o oceano, mas inicialmente não perceberam que se tratava de uma tartaruga marinha indo desovar na areia, sem qualquer tipo de acom-panhamento. Pouco tempo depois, em uma dessas explorações, acompa-nhados de pesquisadores do Museu Oceanográfico do Rio Grande do Sul, é que foi entendido o que se passava ali e, neste momento, pesquisadores enxergaram a necessidade de um projeto de proteção à vida das tartarugas marinhas.
O nome Tamar foi adotado devido à combinação das sílabas iniciais das palavras tartarugas e marinhas, a substituição foi devido às placas utili-zadas pelo projeto para classificarem e identificarem as tartarugas serem pequenas. Inicialmente, o Projeto Tamar buscava garantir proteção às tarta-rugas marinhas em terra, no momento de sua desova e eclosão dos ovos. Com o passar dos anos, também foram adotadas medidas preventivas com pescadores e trabalhos socioeducativos com a população. Desde então, o Projeto Tamar é referência mundial na conservação marinha, sendo fonte de inspiração para a criação de diversos outros projetos espalhados pelo Brasil e pelo mundo.
Relação do projeto com a pesca
Após a realização de estudos, foi descoberto que, ocorriam e ainda ocor-rem, diversos incidentes na pesca, nos quais os pescadores acabam, muitas vezes de maneira involuntária, capturando tartarugas marinhas em redes e outros equipamentos. Segundo o artigo “A pesca artesanal e as tartarugas marinhas no litoral paraibano: aspectos etnozoológicos e conservacionistas”, publicado pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), cerca de 60% dos pescadores já tiveram episódios de pesca acidental, variando entre 1 e 200 tartarugas capturadas por cada um. A maior inimiga das tartarugas marinhas é a rede de espera, sendo cinco vezes maior o índice de acidentes compa-rado a outras técnicas. Outro dado crucial é a taxa de mortalidade dos ani-mais em caso de captura acidental que, segundo os pescadores, é de 50%.
A pesca é, também internacionalmente, a maior ameaça à extinção das tartarugas. Estudos realizados pela ONG Conservação Internacional (CI), em conjunto com universidades norte-americanas, estimam que, durante as décadas de 1990 e 2000, morreram 85 mil tartarugas marinhas por pesca acidental em todo o mundo. No Brasil, de acordo com pesquisa da Universidade Federal Fluminense (UFF), realizada pela bióloga Suzana Ma-chado Guimarães, há uma taxa de 5,3 tartarugas afetadas a cada mil ho-ras de pesca. Por esses motivos, o Tamar realiza diversas ações em busca de uma diminuição do número de incidentes, além de preparar os pesca-dores para que, em caso de pesca acidental, as tartarugas tenham mais chances de sobrevivência.
Atualmente, o projeto trabalha em cinco frentes: monitorar a interação das tartarugas marinhas com a pesca; desenvolver e apoiar pesquisas acercada interação das tartarugas marinhas com a pesca; avaliar as medidas miti-gadoras existentes, e desenvolver novas medidas, quando necessário, e fo-mentar a implementação dessas medidas junto à frota pesqueira comercial; além de apoiar ações que visem o desenvolvimento da pesca responsável e apoiar a criação dos fóruns pertinentes ao tema da captura acidental de tartarugas marinhas.
Além dessas abordagens, o projeto já conseguiu mudanças permanentes, como a obrigatoriedade do uso de anzóis circulares, medida tomada pelo Ministério do Meio Ambiente e pelo Ministério da Indústria, Comércio Exte-rior e Serviços por meio da Lei 9605/98.
Integração do projeto com a sociedade
Como todo projeto de sucesso, o Tamar entendeu a importância de se re-lacionar bem com a sociedade em geral, utilizando da máxima de que é pre-ciso cuidar primeiro das pessoas para que elas possam cuidar da natureza. Esses trabalhos são realizados de formas distintas, com uma parte vol-tada a ações de conscientização, informação e sensibilização ambiental, para que cada vez mais pessoas possam compreender a importância da atuação do projeto, e outra parte que está ligada ao apoio de diversas atividades com caráter não predatório de subsistência, além de também possuírem ações de valorização de práticas e costumes regionais, como danças e artesanatos. O projeto também possui uma estrutura para receber visitantes e curiosos, que buscam entender melhor o trabalho que é feito nos locais. Os locais que possuem ambientes de visitação são: Ubatuba/SP, Praia do Forte/BA, Florianópolis/SC, Oceanário de Aracaju/SE, Vitória/ES, Arembepe/BA e Fernando de Noronha/PE. Há, nessas visitas, o projeto Biólogo Por Um Dia, no qual visitantes auxiliam nas atividades do Tamar, como na alimentação das tartarugas, essa atividade também possui uma versão online que pode ser acessada por qualquer pessoa através de um agendamento prévio.
Pesquisas aplicadas pelo Tamar
O site do projeto conta com explicações técnicas do trabalho realizado com as tartarugas que podem ser divididas em algumas partes. A primeira é a observação das praias de desova de setembro a março, período em que os pesquisadores passam todas as noites observando e catalogando toda a ação das tartarugas, desde a contagem de ninhos e ovos até possíveis transferências para locais mais seguros e próximos à sede do projeto na cidade em questão. A segunda abordagem é a catalogação de todas as tar-tarugas encontradas, através de um anel metálico inserido nas nadadeiras direitas, sejam em áreas de desova, em incidentes de pesca ou até mesmo por mergulho em alguns locais como Fernando de Noronha. A terceira ma-neira é a análise das áreas de alimentação das tartarugas, que geralmente é feita com a inserção de técnicos junto aos pescadores, nas quais eles recebem orientações para soltar e salvar as tartarugas que acidentalmente forem capturadas. Essas pesquisas garantiram a devolução de mais de 35 milhões de tartarugas ao oceano, além da obtenção de dados sobre carac-terísticas de desova e eclosão, áreas de alimentação e ciclo de vida, junta-mente com a catalogação desses animais.
Com a explosão tecnológica do final do século XX, que cresce cada vez mais neste início de novo milênio, surgiram várias ferramentas de rastrea-mento e análise. Uma delas é a telemetria, que é responsável por mapear, via satélite, o deslocamento das tartarugas. Essa tecnologia é fundamental para entender a migração, áreas de alimentação e várias outras caracterís-ticas do comportamento dos animais, o que permite ao projeto conseguir entender melhor os hábitos das tartarugas. Um estudo realizado no nordes-te brasileiro mostrou que tartarugas-oliva percorreram cerca de 4.500 km entre a costa brasileira e a costa de Cabo Verde num período de 110 dias, isso permite ao projeto mapear e entender melhor a forma com que elas vivem e se deslocam. A primeira vez que a ferramenta foi utilizada no Brasil foi em 2001, no Ceará. O projeto também realiza estudos com sistemas de localização e movimentação.
Atuação do projeto na costa brasileira
Como já mencionado anteriormente, o Projeto Tamar teve seus primórdios no litoral do Rio Grande do Sul, mas obviamente, assim que foi definida a intenção do projeto, ficou claro que era absolutamente necessário estar onde as tartarugas estão. Com isso, houve a criação de diversas sub-se-des, atualmente presentes em 23 localidades, distribuídas em oito estados brasileiros, entre zonas costeiras e ilhas oceânicas dos estados: Rio Grande do Norte, Pernambuco, Sergipe, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina. O projeto cuida das cinco espécies de tartarugas marinhas encontradas no Brasil: Tartaruga Cabeçuda ou Mestiça, Tartaruga Verde ou Aruanã, Tartaruga de Pente ou Legítima, Tartaruga de Couro ou Gigante e Tartaruga Oliva. Todas elas estão ameaçadas de extinção.